Na trilha da música: uma entrevista com Marcelo Bellini Dino

O compositor, produtor musical, professor e pianista Marcelo Bellini Dino é doutorando em Música pela ECA/USP, mestre pela ECA/USP e graduado em Composição e Regência pela UNESP. Como compositor, ele é autor de inúmeras trilhas sonoras para TV e cinema e já recebeu uma série de prêmios, como o Tenth Piano Composition Competition Fidelio de Madrid, o Tinta Fresca 2017, da Filarmônica de Minas Gerais e o Concurso de Composição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro em 2010. Nesta entrevista, Marcelo nos fala sobre sua carreira e de como ter sua obra “O Canto da Fênix” selecionada e executada no concerto de encerramento da 25ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea.

ATG Como e quando você começou a se interessar por música? Teve, então, alguma influência em família ou de alguma outra pessoa em relação à música? Qual foi o seu primeiro instrumento?

Marcelo Dino – Iniciei meus estudos no piano, aos 8 anos. Meus pais compraram um piano de armário para meu irmão mais velho aprender, mas ele não se adaptou. Minha mãe então me perguntou se eu queria estudar piano e eu disse que sim. Meu pai cantava de forma amadora quando jovem, mas não teve oportunidade de continuar no meio artístico. Ele sempre me apoiou muito quando percebeu que eu tinha interesse pela música.

Qual foi o primeiro grupo ou orquestra de que participou?

A partir dos 14 anos, comecei a me interessar em tocar com amigos, formando bandas. Participava de festivais nas escolas como o FICO (Colégio Objetivo) e ali nasceu um forte interesse pela composição e criação. Além desses conjuntos, também passei a tocar na noite, em bares e festas; e passei a acompanhar alguns artistas nacionais já conhecidos. Meus estudos eram focados em música erudita mas, na prática, eu circulava na área da música popular brasileira e do pop/rock internacional.

E quando passou a se interessar pela composição e decidiu se dedicar a essa atividade? O que o motivou nesse sentido?

Como mencionei, a composição aflorou já na adolescência. Contudo, ainda limitada pelas minhas capacidades técnicas de escrita e de conhecimento musical. Ao tirar músicas de ouvido e reproduzi-las em meus equipamentos eletrônicos, eu já mergulhava nas estruturas e elementos de uma composição e isso foi me dando base para, ao mesmo tempo, criar minhas próprias músicas, ainda que simples. Creio que ter a possibilidade de me expressar sem palavras foi uma grande motivação para começar a compor. Fui um garoto mais introspectivo na adolescência.

E o que veio primeiro, o trabalho de composição ou o de produção musical?

A composição veio antes, por meio de pequenas ideias, pequenas músicas, ao passo em que eu estudava o piano de forma sistemática. Minha formação foi no conservatório clássico (9 anos de piano + 1 de aperfeiçoamento). Mas, minha vida musical sempre foi uma mescla de música erudita e de músicas populares, passando inclusive pela escuta do jazz rock. A produção musical de forma profissional começou somente aos 23 anos de idade, com arranjos para discos e de trilhas sonoras para novelas e minisséries na televisão.

Você é um reconhecido compositor de trilhas sonoras. Quais são as características específicas desse tipo de composição? No que esse tipo de obra é diferente de outros gêneros musicais, como a música para concerto, por exemplo?

Eu considero a composição para trilha sonora e a composição de música de concerto como domínios da área da música. Claro que compor para imagens tem suas implicações, principalmente relacionadas à duração de cada trecho da trilha – as chamadas cues – e especificidades relacionadas à maneira como o compositor realiza o desenvolvimento dos materiais musicais. A trilha sonora requer do compositor um desprendimento do ego. Ali, sua função é apoiar a narrativa cinematográfica, criando atmosferas e climas que ajudem a contar determinada história.

Além disso, a trilha sonora é sua, mas o filme não! Desta forma, o compositor precisa se adaptar às expectativas de várias figuras envolvidas no processo criativo. Como, por exemplo, o diretor do filme e da própria indústria cinematográfica, os produtores executivos. Mas a trilha sonora é um ambiente aglutinador. Todos os gêneros são bem-vindos e o compositor pode transitar por diversas estéticas diferentes, de forma sucessiva ou simultânea, desde que as domine bem. É também um ambiente muito criativo.

Já na área da música de concerto há, sem dúvida, maior liberdade artística e a possibilidade de criações com maior complexidade. Neste espaço, o compositor pode se expressar de forma mais livre, tomando mais riscos criativos para si. Mas não é incomum que as linguagens nesses dois domínios se cruzem e se confundam. Afinal, a arte se transforma através da retroalimentação e da interação entre tantos domínios existentes.

Além de compositor e produtor musical, você é professor. Poderia nos contar um pouco mais sobre a sua trajetória acadêmica e profissional?

Após terminar meus estudos em composição e regência, aos 26 anos, decidi me dedicar quase que exclusivamente à produção musical em estúdios de gravação, ambiente onde já trabalhava havia 3 anos. Durante anos, criei centenas de peças musicais para televisão, rádio, internet e cinema. Mas, aos poucos, fui sentindo a necessidade de retomar a criação de música de concerto, em maior escala.

Queria compor peças com uma duração mais extensa e com total liberdade ar tísica. Percebi ao mesmo tempo que me reaproximar do meio acadêmico seria uma forma de me manter conectado com a área de composição, que sempre foi meu maior interesse. Resolvi fazer meu mestrado em música (2009/11), pela USP, e esse processo me possibilitou começar a lecionar na pós-graduação em Trilha Sonora da Universidade Anhembi Morumbi, no ano de 2013. Em 2018, migrei para a graduação da mesma universidade, na área da produção fonográfica, onde me encontro atualmente. Neste momento estou finalizando meu doutorado em música, também pela USP, completando assim, mais uma fase da minha trajetória acadêmica.

Desde 2015, reduzi minhas atividades na área da produção musical. Isso me trouxe um equilíbrio maior entre minhas três áreas de atuação: lecionar, produzir e compor. O aumento na produtividade da composição para música de concerto me trouxe equilíbrio e realização artística pessoal. A consequência deste processo tem me agraciado com algumas premiações relevantes no meio musical erudito brasileiro e até internacional. Mas não tenho dúvida que a execução de todas as obras que escrevi desde 2015 é o maior prêmio que eu poderia desejar. Foram ao todo, sete obras sinfônicas, todas estreadas. “Dèjá-vu para orquestra sinfônica” – composta no início de 2023 -, acaba de vencer o prêmio IberMúsicas (Latino-americano+Espanha) e será estreada em 2024, em Cuba ou na Venezuela.

Como foi participar da 25ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea? Como foi o processo de composição de “O Canto da Fênix: ascensão, morte e renascimento”? Houve alguma inspiração especial para criar esta obra?

Participei também da XXIV Bienal, em 2021, com “(in)Tolerâncias para orquestra de cordas”. Em 2007, cheguei a inscrever um quarteto de cordas na Bienal que não foi contemplado. Naquela época eu pensei: “A Bienal não é para mim, minha música não está alinhada com as expectativas estéticas dessa relevante mostra”. E assim, nunca mais me inscrevi! Em 2021, após algum tempo de amadurecimento e tendo em mãos uma obra que, em meu modo de ver, estaria mais alinhada, resolvi inscrever.

Percebo que atualmente a Bienal está mais eclética e procura contemplar várias vertentes e estéticas musicais. Acho fantástico, pois isso nos proporciona uma visão mais abrangente do fazer musical em nosso país. Uma visão panorâmica, mas circunscrita à música de concerto!

Participar da XXV Bienal de Música Brasileira Contemporânea foi fantástico! Há sempre uma troca de experiências muito grande entre orquestra, regente, solistas e compositores. É um momento para apreciarmos o que de mais recente vem sendo criado em nosso país. Desta vez, fui a Barra Mansa acompanhar os ensaios da orquestra com o querido maestro Anderson Alves, e depois fomos ao Rio de Janeiro, para a realização do concerto de encerramento da Bienal.

“O Canto da Fênix” surgiu a partir de uma encomenda realizada pela Sala Cecília Meireles, na figura de seu então diretor artístico, o compositor João Guilherme Ripper, em 2022. Ripper me deu total liberdade artística. Seu único pedido foi que eu mantivesse a formação da orquestra limitada e semelhante à instrumentação utilizada por Ravel para seu “Concerto em G para piano”. Minha peça seria tocada antes desse concerto e pelas dimensões da Sala, seria muito conveniente reduzir a orquestra. Solicitei apenas a inclusão da harpa e do vibrafone, para além da instrumentação utilizada por Ravel. A duração solicitada pelo Ripper foi de oito minutos.

Sobre a inspiração da obra, em um primeiro momento eu sempre me atenho a ideias musicais que ache significativas e passíveis de bom desenvolvimento. Minha música de concerto não tem relação com imagens, apesar de muitos me reportarem suas experiências imagéticas ao ouvi-la.

Normalmente os títulos me vêm durante o processo de composição ou até mesmo ao final desse processo. Algo como uma sugestão proveniente da própria música, do próprio material musical. “O Canto da Fênix”, particularmente retrata um processo bastante difícil pelo qual passei no final de 2021 e por todo o primeiro semestre de 2022, quando minha mãe adoeceu por conta do surto da gripe H3N2 e ficou internada durante 80 dias. Literalmente um processo de quase morte, mas ao final, de renascimento! A composição não poderia deixar de retratar a aflição e o processo de luto antecipado pelo qual passei e que todos nós teremos que vivenciar algum dia em nossas vidas.

Como vê o cenário da música instrumental de concerto, como um todo, no Brasil hoje, e o espaço para a composição de música de concerto em nosso país, hoje?

Creio que estamos em uma curva crescente em nosso cenário. É fato que muitas vezes observamos cortes orçamentários significativos, que muitas vezes acabam com entidades inteiras, o que me parece um grande retrocesso cultural. Mas em contrapartida, vemos projetos de formação vencedores, orquestras jovens com ótimo nível de interpretação e alguns projetos de apoio à composição. Destaco aqui o Festival Tinta Fresca que anualmente é realizado pela Filarmônica de Minas Gerais, sob direção do maestro Fábio Mechetti e do apoio de seu presidente, Diomar Silveira. Este festival proporciona uma experiência singular aos compositores que chegam à final do concurso, pois os finalistas acompanham os ensaios e tem suas obras executadas por uma orquestra de excelência em nosso cenário musical.

Outro destaque que gostaria de mencionar é a visão do maestro Abel Rocha (diretor artístico da Orquestra Sinfônica de Santo André – OSSA) que procura de forma sistemática encomendar e estrear obras de compositores brasileiros. Mas, sem dúvida, necessitamos de mais festivais e concursos, haja vista o alto número de obras enviadas à XXV Bienal de Música Brasileira Contemporânea.

Para encerrarmos, que conselho você daria para um jovem músico que deseja iniciar sua carreira agora e tem a ambição de trabalhar como compositor e, especificamente, sonha em trabalhar com trilhas sonoras no Brasil?

Creio que em primeiro lugar repassaria o conselho que ouvi de um dos meus mestres, o compositor Edson Zampronha, quando tinha aulas de composição na UNESP. Ele me disse uma vez: “Nunca pare de compor!” O processo de formação e amadurecimento de um compositor muitas vezes é lento e requer um significativo número de tentativas, erros e acertos, até que atinja um nível de excelência. Além disso, é importante entender onde está o mercado que pode absorver e utilizar suas composições. Nada mais frustrante do que compor e suas ideias ficarem “na gaveta”! Para aqueles que sonham em trabalhar com trilhas sonoras, além de muito estudo de música, torna-se imprescindível entender os mecanismos da composição para que sua música esteja sempre a serviço da narrativa e da imagem. Como disse Adorno, a música de cinema não pode perder-se em si mesma sob pena de não atingir seu objetivo final, o de prover à imagem o sentido que lhe falta.