“Você tem boca de trompetista”

As palavras têm poder, e foi a partir de uma frase, dita por um maestro de Mauá (SP), sua cidade natal, que o então pré-adolescente Flávio Gabriel adotou o instrumento que o acompanharia até hoje. Flávio é um dos professores do curso de Trompete da Academia Arte de Toda Gente, junto com os também trompetistas Leandro Soares e Paulo Viveiro. Os interessados podem se inscrever até o dia 21 de maio, no site https://academia.artedetodagente.com.br. Na entrevista exclusiva a seguir, o músico nos fala do início da carreira e das razões de o trompete estar se tornando cada dia um instrumento mais popular.

Quando começou sua carreira na música? Como o trompete entrou na sua vida?

Comecei a tocar trompete aos 11 anos, de idade na Banda Lyra de Mauá – SP, onde morava. Não tenho músicos na família, mas minha mãe sempre ouvia música clássica em casa e, também, sempre gostei. Como garoto, queria tocar guitarra, saxofone, esses instrumentos mais populares. Um dia, após sair do colégio, um amigo e eu fomos procurar uma escola de música. Ele queria aprender violão e eu saxofone. Ao final encontramos a Lyra, e o maestro acabou me oferecendo o trompete. A frase mágica que ele usou foi: “Você tem boca de trompetista”. Não sabia o que aquilo queria dizer, mas achei que seria bom começar com alguma vantagem (risos).

A procura pelo aprendizado de trompete nos últimos anos tem sido cada vez maior, especialmente no Rio de Janeiro, impulsionada pelo grande número de blocos de fanfarra de Carnaval, além de novos festivais, como o Honk. Como você vê esse movimento? Que o trompete tem de tão especial?

Acho interessantíssimo qualquer incremento ou busca de aprendizado musical. Fico muito contente com a ideia de que o Carnaval esteja impulsionando a prática de instrumentos de sopro de forma amadora no país. É uma forma de popularizar o instrumento, descobrir potenciais e futuros profissionais, movimentar o mercado de ensino com esses novos alunos. O trompete é, historicamente, um instrumento de liderança. Nascemos com o intuito de avisar a presença do inimigo, passamos a servir de instrumento de comunicação durante as guerras. Tivemos um papel muito importante também nos ritos religiosos na cultura judaico-cristã. Em alguns países do Leste europeu, temos alguns festivais gigantescos onde as bandas formadas por maioria de trompetistas são a atração principal. Embora possa parecer assustador e um tanto quanto barulhento, será maravilhoso ver um mar de trompetistas anunciando alegria.

Até alguns anos atrás, era raro ver uma mulher tocando trompete, mas isso tem mudado nos últimos tempos. Embora ainda ocorra o predomínio masculino, já é comum ver nos blocos muitas garotas se destacarem com o instrumento, tanto no Rio como em grupos da França, por exemplo. Há alguma questão fisiológica ou histórica para que o trompete que não atraia tanto?

É interessante notar que o trompete é um instrumento que representa a voz feminina. Somos um instrumento que atua na mesma linha das sopranos. A resposta que tenho para sua pergunta é baseada em vivência, e sinto muito por isso, já que o tema requer um conhecimento mais aprofundado. Posso afirmar, com certeza, de que não há nenhuma questão fisiológica que impeça a prática do trompete por parte do público feminino. Desconfio que o histórico do instrumento, sempre associado a guerras e religião, talvez justifique a pouca participação feminina nesse sentido.

Na Europa, no Japão e nos EUA, há um bom tempo contamos com a presença de mulheres nos metais. Trompetistas, como Alison Balsom, Mirreia Farres e Luciene Renaudin, para citar algumas, são verdadeiras estrelas do instrumento e referências mundiais. No Brasil, como em muitos outros casos, ainda estamos muito aquém, mas felizmente também já temos alguns casos de excelentes trompetistas mulheres atuando, tanto na área de música de concerto como na de música popular. Ainda assim, há muito que ser trabalhado para termos uma presença mais equilibrada.

Você tocou em diferentes orquestras do Brasil, vê alguma variação na busca pelo instrumento nas diferentes regiões do país?

Por conta de minhas decisões de carreira, já vivi no Sul (Porto Alegre), Sudeste (Campinas, Rio de Janeiro e São Paulo) e hoje vivo no Nordeste (Natal). O trompete, embora não seja tão popular como o saxofone, tem um papel muito importante nas bandas militares e igrejas, portanto, por todos os lugares em que passei sempre encontrei muitos colegas de instrumento.

Além da Academia Arte de Toda Gente, você realiza outro curso do instrumento on-line e ainda dá dicas no Instagram, com muita desenvoltura. Sempre foi assim ou o isolamento da pandemia serviu de estímulo?

Sou fã do EAD antes mesmo de saber que esse era o nome dessa modalidade de ensino. Por conta disso, em 2014 fiz um Mestrado em Ensino Musical com foco no ensino do Trompete à distância. Foi aí que nasceu o meu portal Trompete On-line. Quando chegamos na pandemia, apenas me aprofundei um pouco mais nessa área, por ser a única possibilidade existente.

É possível começar no trompete do zero e em qualquer idade? Qual dica você daria para aqueles que se sentem encantados por esse instrumento, mas ainda não tiveram coragem de começar a estudar?

Acredito que seja possível começar do zero, em qualquer idade, qualquer atividade que seja um verdadeiro desejo de nosso coração. É óbvio que se o desejo for se tornar um atleta olímpico,ou um músico de uma grande orquestra, quanto mais cedo a pessoa começar, melhor. O tempo médio de formação de um músico profissional gira em torno de 10 anos. Grandes solistas levam em média cerca de 20 anos para alcançar esse estado. Agora, quem está começando não deve se preocupar com isso nesse momento. Se essa pessoa gostar, terá encontrado, muito provavelmente para a vida inteira, uma forma incrível de contato com o mundo das artes.

Fale um pouco do curso que você ministra na Academia Arte de Toda Gente, pelo projeto Sinos. A que público se destina?

O curso foi elaborado pelos professores Leandro Soares, Paulo Viveiro e por mim. Em 20 aulas abordamos os principais temas necessários para tocar trompete de forma eficiente. Sinto-me extremamente honrado em ter feito parte desse projeto, já que acredito que conseguimos chegar a um resultado final útil a trompetistas dos mais variados níveis. Toda vez que me perguntam sobre bons cursos de trompete na internet, o primeiro que recomendo é o do Sinos.

Para encerrarmos, tem alguma curiosidade do instrumento ou alguma situação inusitada o envolvendo que possa nos contar?

Em 1922, dois trompetes foram encontrados na tumba de Tutancâmon. Em abril de 1939, a BBC de Londres organizou um evento onde convidaram um trompetista para tocar os instrumentos. Algumas pessoas supersticiosas sugeriram que não se deveria, por conta de alguma maldição associada a esse faraó. Coincidência ou não, poucos meses, depois a 2ª Guerra Mundial teve início. Em 1967, o trompete de Tutancâmon foi novamente tocado e logo em seguida deu-se início ao que ficou conhecido como a Guerra dos Seis Dias. Em 1990, logo após o instrumento ter sido tocado novamente, houve o início da Guerra do Golfo. Em 2011 foi a última vez que o instrumento foi tocado, uma semana depois começaram os episódios mais violentos da Primavera Árabe, no Egito. Bom saber que os trompetes no Brasil estão servindo para anunciar alegria durante o carnaval, não?

Flávio Gabriel iniciou seus estudos na Banda Lyra de Mauá (SP). Posteriormente estudou com os professores Clóvis Beltrami em Campinas (SP) e Naílson Simões na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio.

Foi membro da Orquestra Jovem das Américas entre 2005 e 2007, da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre entre 2004 e 2009 e da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – Osesp entre 2009 e 2015.

Como solista, nos últimos anos, tem se dedicado à estreia de obras de compositores nacionais compostas especialmente para ele, além de estreias nacionais de compositores estrangeiros.

Um dos mais destacados trompetistas de sua geração, Flávio Gabriel conquistou o segundo lugar no Concurso Internacional de Música Primavera de Praga, em 2010. O prêmio, inédito na história do trompete no Brasil, é considerado um dos mais difíceis no mundo.

Doutor em música pela Universidade Estadual Paulista – Unesp e professor de trompete na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, é o idealizador da plataforma Trompete On-line e do Festival Internacional de Música em Casa – Fimuca.