Está disponível aqui no site, o espetáculo *O Canto dos Malditos*, com o bailarino e coreógrafo Marcos Abranches (foto). Nascido com paralisia cerebral, ele encontrou na dança, mais do que um caminho para superar suas dificuldades físicas, uma vocação e uma profissão. Na apresentação, Marcos fala sobre seus processos de construção e pesquisa e apresenta sua obra em forma de videoarte, usando seu corpo para expressar sentimentos como a solidão, o fracasso e a tristeza frente as atrocidades da vida, trazendo para a cena como um desabafo, seus conflitos e questões sobre o homem e a sua inconsistência.
**Como você começou na dança, quando decidiu que esse seria o seu caminho?**
Na verdade, acho que quando minha mãe ficou grávida, eu já era um artista. Penso que esse foi o projeto de Deus para mim, uma missão no mundo como um ser humano artístico. A dança, a arte, realmente abriram a porta, quando eu comecei a frequentar espetáculos de dança com um grande amigo meu, o Sérgio Paes, que foi meu padrasto também. O Sérgio trabalhou no Ballet de São Paulo e começou a me levar para conhecer o que era a dança contemporânea. Foi aí que minha vida começou.
A arte e a dança realmente apareceram para mim quando o coreógrafo Sandro Bollano me convidou para fazer um teste na companhia dele. Na época, ele estava criando um projeto baseado na obra de Augusto dos Anjos e, aí, quando eu percebi, já estava dentro da companhia, dentro da dança e da arte contemporânea.
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**O que o inspira a criar?**
Criar é a própria vida, o próprio momento, as 24h da nossa vida são uma criação. É como se fosse um livro e cada página para mim está em branco. Cada dia começa numa página branca e a vida precisa ser escrita. Eu não posso deixar passar em branco a história da minha vida, da minha arte e da minha própria criação. Então, o que me inspira na hora de criar é minha própria vida, o momento e minha visão do mundo, do Brasil, da política. Tudo isso me inspira a criar o meu trabalho.
**Como é ser o único coreógrafo brasileiro com paralisia cerebral a propor um estudo sobre dança contemporânea?**
É um orgulho saber que eu sou o único brasileiro coreógrafo com paralisia cerebral. A paralisia cerebral é um presente, que me fez ser um artista, me fez descobrir que a minha deficiência é uma grande diferença na hora de criar, na hora de dançar. Ela está relacionada às as minhas próprias qualidades, à natureza, ao meu corpo, que é um corpo diferente, olhado com muito preconceito, pela necessidade. Mas eu tenho muito orgulho da minha paralisia.
Comecei a gostar do preconceito, não tenho tanta raiva dele. O preconceito virou uma grande vitamina, um obstáculo para que eu pudesse provar para todo mundo que a minha pré deficiência ou paralisia cerebral me fez ser um superador da própria vida, da própria arte. Então, quando falam que eu sou o único coreógrafo brasileiro com paralisia cerebral, sinto muito orgulho disso.
**Qual é o seu público? Há diferença em como sua arte é recebida aqui ou no exterior?**
Eu ainda fico um pouco triste quando eu olho para o meu público. Ainda vejo poucas pessoas com algum tipo de deficiência. Em nosso país, ainda é muito difícil para essas pessoas irem a um espetáculo, principalmente por conta da estrutura de locomoção e da falta de informações.
Certa vez, participei de um festival internacional de dança na Alemanha e isso foi marcante. Eu estava no meu camarim, quando chegou a informação de que precisavam tirar algumas cadeiras da plateia. Aí eu perguntei: “Mas por que vão tirar cadeiras do público?” E me responderam: “Porque lá fora, na fila de espera, tem mais ou menos oitenta cadeirantes esperando o seu espetáculo começar”. Eu fiquei super emocionado, fico até arrepiado de lembrar.
Depois, fiquei pensando, olha que diferença de um país de primeiro mundo em relação ao nosso Brasil. Aqui é muito difícil ainda ver uma pessoa com algum tipo de deficiência na minha plateia, infelizmente. Mas eu continuo nessa luta, para que no futuro comece a ver mais pessoas assim envolvidas com a cultura. Não só na dança, na arte em geral. E acredito que ainda vou ver um Brasil melhor em relação ao público com algum tipo de deficiência. É essa a minha luta, é essa a minha missão.
**O que você aconselharia aos que, independentemente de terem ou não alguma deficiência, querem se iniciar na dança?**
Diria a eles que a arte, a dança, a cultura, fazem parte da educação. Para mim, a dança virou uma grande fisioterapia, fisica e psicologicamente. No começo, minha própria família não acreditava muito que essa poderia ser a minha carreira, minha profissão. Não apenas pela deficiência. Tem muita gente que pensa que ser dançarino, bailarino, que trabalhar na cultura são coisas de quem sonha muito, que é profissão da pessoa que não quer trabalhar.
Eu tive de provar isso, não só para minha família, mas para mim mesmo. E consegui criar a minha própria profissão, a minha empresa. Hoje tenho uma companhia que é minha. Eu consegui criar a minha fonte de sustento com a minha arte, com a minha cultura.
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**Como é *O Canto dos Malditos*, que você apresenta aqui no projeto Um Novo Olhar?
Eu tenho um orgulho de coração de mostrar esse trabalho, pois foi o início dacompanhia, foi o meu primeiro projeto, o começo da minha criação. Isso foi em 2008, quando eu ainda tentava fazer meu sonho virar realidade. Queria ser um coreógrafo igual ao Sandro Bollano, no qual eu me inspiro, não só como coreógrafo, mas também como pessoa. Esse trabalho foi o início da realização desse sonho.
Ele é inspirado no livro *O Canto dos Malditos*, de Austregésilo Carrano Bueno, que depois virou o filme *Bicho de Sete Cabeças*, com Rodrigo Santoro, e que ficou muito conhecido, aqui no Brasil e no mundo todo. A história real de Austregésilo me comoveu muito. O conheci pessoalmente e fiz uma grande amizade com ele. Passamos muito tempo juntos, tomando uma cerveja, conversando a noite toda. Eu fiquei muito comovido com sua história, com tudo que ele passou dentro do manicômio. Foi ele quem me inspirou a criar, me fez plantar uma semente. E aí, depois de 9, 10 meses, estava pronto o projeto *O Canto dos Malditos* .
**Qual a mensagem que você gosta de passar sobre sua dança e suas coreografias?**
Gostaria de falar para todos que eu sou muito feliz naquilo que faço, que pratico, naquilo que estudo. A parceria com todos da minha equipe é fundamental, ninguém consegue fazer nada sozinho. Hoje, estou trabalhando com pessoas muito importantes na dança, como a minha produtora, a Solange Bolleri, o meu grande amigo, Pedro Simples, que é o criador da trilha sonora. Existe toda uma estrutura para que o trabalho possa crescer, é uma família. E há uma comunicação muito ética com todos, muita transparência com todo mundo. É como quando você vive com outras pessoas, dentro de casa, com sua esposa, seu filho.
Vejo muito esse lado pessoal junto com meu com meu trabalho. Deus colocou muitas pessoas boas na minha frente, para que o meu trabalho pudesse ser reconhecido, não só no Brasil como no mundo.
Então, quero dizer a todos para nunca abaixarem a cabeça, que qualquer sonho que a gente tem pode ser realizado, com muita luta, com muito estudo, com muita pesquisa. Ninguém cria um trabalho em três ou quatro dias. Isso é fundamental quando você cria um trabalho de dança, um trabalho de arte. Eu acho que a pesquisa, o laboratório, são muito importantes nessa área.
Se não fosse o sonho, a gente não teria motivos para estar no mundo. O sonho é sempre motivo para o dia seguinte, para a gente acordar, olhar para frente e acreditar no futuro.
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**A trajetória do artista**
**Marcos Abranches**, 43 anos, utiliza a própria deficiência como referência de estudo para a construção de sua linguagem artística corporal. Ele atuou na Cia. FAR 15, em trabalhos dirigidos e coreografados por Sandro Borelli e Sônia Soares – como *Senhor dos Anjos*, *Jardim de Tântalo* e *Metamorfose*. Em 2007, iniciou sua trajetória como artista independente, criando o coletivo Vidança Cia, que agrega artistas de diversas linguagens e que, em 2017, passou a ser chamado de Marcos Abranches & Cia. Em seu repertório, destacam-se as obras *Formas de Ver*, *Via de Regra*, *Corpo sobre Tela*, *Canto dos Malditos* e *O Grito*.
Na Alemanha, Marcos Abranches participou do Kulturdifferenztans, em Colônia, e do Crossings Dance Festival, em Düsseldorf. Ele atuou na peça *Trem Fantasma*, uma adaptação da obra *Navio Fantasma*, de Wagner, e na ópera teatralizada *Vida e Obra de Joana D’Arc*, no Deutsche Open Berlin.
No final de Fevereiro, Marcos foi vencedor da categoria Melhor Intérprete do VIII Prêmio Denilto Gomes de Dança 2020, da Coopertiva Paulista de Dança, por seus espetáculos *O Grito* e “Canto dos Malditos*.
***Confira a obra de Marcos Abranches e outros artistas aqui no site do projeto Um Novo Olhar e no canal Arte de Toda Gente no Youtube.***