Lançada no dia 25 de janeiro, a Mostra Virtual Bossa Criativa – Arte de Toda Gente Ouro Preto está apresentando, em 12 vídeos, mais de 50 artistas e agentes culturais que atuam na cidade histórica mineira. Parte da série de mostras do programa Arte de Toda Gente, que inclui nove cidades reconhecidas como patrimônios culturais, o evento conta com curadoria da Fundação de Arte de Ouro Preto – FAOP. Nesta entrevista, a coordenadora do Núcleo de Arte & Ofícios da Fundação, Rachel Falcão, nos fala sobre sua trajetória e do significado da mostra para a produção artística e cultural da cidade.
Como começou a sua relação com o universo das artes?
Minha relação com as artes vem desde muito cedo. Ainda criança tive a felicidade de conviver com desenhos, tintas e pinceis, num aprendizado considerado como prática artística. Depois, entrei na faculdade de Arquitetura, mas ‘pulei’ para as Artes. Fato é que, ao longo da vida, nunca separei muito o universo das artes de tantos outros – gosto da inserção da arte na vida e da vida na arte; e da diversidade vivendo em comum num multiverso. Crio e produzo objetos de arte também, mas me interessam as interações e intervenções. E enxergo a minha atuação, no todo – como artista, professora, pesquisadora e gestora cultural – como minha atividade artística.
Como surgiu a ideia da mostra de Ouro Preto?
Quando nos reunimos com o professor Marcelo Jardim, que nos trouxe a proposta da mostra, me preocupei com o fato de serem apenas 12 vídeos, para 12 artistas, para apresentação das diversas manifestações artísticas e culturais referentes a todas as linguagens. Do popular ao erudito, do tradicional ao contemporâneo, passando pelos saberes e fazeres de toda gente; embora essas fronteiras e categorizações façam cada vez menos sentido e as ações sejam cada vez mais fluidas, felizmente! Assim, propus que definíssemos os vídeos por temas, para que pudéssemos reunir um maior número de artistas e coletivos em torno de cada tema, apresentando diferentes perfis em cada vídeo.
Deste modo, temos no mínimo dois artistas por vídeo, chegando a mais de 10 em alguns outros. Isso, sem considerar aqueles que representam e apresentam manifestações coletivas por excelência, como o congado e as bandas, e que reúnem um número muito maior de pessoas. Ainda assim, se pudéssemos fazer mais vídeos, teríamos muito mais a apresentar.
E de que forma foi realizada a curadoria?
A curadoria é da FAOP e é fruto do trabalho coletivo de uma equipe composta por várias pessoas que estão à frente das ações da Fundação. Elas se reuniram para pensar uma forma possível de apresentar um pouco da produção artística e cultural da cidade ao público. Coube a mim, por fim, coordenar as ações que possibilitaram o registro de nossos artistas e agentes culturais para configurar a mostra.
Como você vê a importância da mostra na divulgação da cultura de Ouro Preto?
Como o próprio fato de ter sido uma das nove cidades patrimônio escolhidas pelo Bossa Criativa para apresentar sua mostra já indica, Ouro Preto é famosa por sua história e pela relevância de seu patrimônio histórico. Entretanto, o que esta mostra nos permite é revelar uma outra Ouro Preto, para além daquela dos cartões-postais.
Mesmo quando a produção artística e cultural está completamente embebida pela paisagem e pelas tradições locais, ela revela personagens, perspectivas e vivências singulares, que transcendem e transpassam as leituras prontas das fachadas coloniais. O olhar de dentro, de quem vive as ruas, os becos, as minas, as lendas, os morros, os cheiros, a fé, de quem traz na pele a história e escava o dia a dia numa cidade que se equilibra entre ser, ao mesmo tempo, interiorana e cosmopolita, vem costurando reflexões e trazendo à tona sons, imagens, falas e processos que aprofundam o entendimento do que vem a ser Ouro Preto. E ampliam as possibilidades de experienciar a cidade de outras formas, considerando-a em diversas outras instâncias.
Recentemente, a cidade sofreu com deslizamentos provocados pelas chuvas, que afetaram, inclusive, casarões históricos, o que reforça a importância da preservação e divulgação desse imenso patrimônio histórico e cultural. Várias obras da mostra retratam a cidade e seus detalhes. Ter a própria cidade como inspiração é uma característica dos artistas locais?
A cidade sofre com o excesso de chuvas em todos os âmbitos – no que se refere ao patrimônio histórico, mas também ao patrimônio modesto, no centro histórico e nas periferias. As características geográficas e geológicas locais, ao mesmo tempo em que definem uma paisagem encantadora, produzem muitas áreas de risco. Diante disso e de uma cidade quase inteira tombada, a necessidade de conservação e restauração do patrimônio edificado é permanente e as urgências são muitas, assim como a necessidade de preservação do que se configura como patrimônio cultural ou natural. Por outro lado, também é fundamental a implementação de políticas públicas que promovam uma maior interação entre a cidade patrimônio e seus moradores, para que, além de importante para a humanidade, ela faça sentido e sirva à sua comunidade.
Podemos, sim, dizer que os artistas estabelecem uma relação afetiva muito intensa com a cidade. E que ela é, de fato, inspiradora! Eu mesma estou em Ouro Preto há quase 14 anos, e não me canso de me surpreender com a paisagem vista de um novo ângulo (ou a mesma e incrível paisagem vista todos os dias!), os detalhes dos muros e casas, os cantos, recantos, as histórias e as gentes! E a luz de Ouro Preto?!….É um escândalo!
Mas também cabe à arte o papel de contribuir para que a história seja revisada e recontada. De promover a aproximação e inserção social e cultural daqueles que, mesmo morando aqui, se sentem intimidados e pouco pertencentes a esta cidade maravilhosa e a tudo o que ela tem a oferecer. Neste sentido, as práticas e produções artísticas contemporâneas, que ultrapassam e atravessam a representação, em busca de questionamentos e reflexões outras, vêm ganhando espaço e se fazendo presentes, de modo cada vez mais ativo e efetivo, na cena ouro-pretana.
Você tem pesquisa sobre práticas artísticas colaborativas. A pandemia impactou as práticas dessa natureza, mostrou outras possibilidades?
Sim, venho lidando com as práticas artísticas colaborativas, em campo ou via pesquisa acadêmica, há mais de duas décadas. Estou, inclusive, com um doutorado em curso, relacionado a essa temática. A pandemia dificultou algumas propostas, como estar em campo com grupos e comunidades específicas, em ações inseridas no cotidiano – que é o que está mais diretamente relacionado às minhas práticas e pesquisas, mas criou outras tantas formas possíveis de colaboração online.
Derivando para a minha atuação como professora e gestora do Núcleo de Arte e Ofícios da Fundação de Arte de Ouro Preto, a FAOP, que é uma outra atividade colaborativa, o que experienciamos foi, por um lado, a redução em nossas ofertas de cursos livres de arte e a necessidade de adaptação das aulas ao modo online. Compensadas, entretanto, pela possibilidade de atender a um número maior de alunos e, além disso, a alunos residentes em qualquer parte do Brasil ou mesmo em outros países. As atividades de extensão foram as mais prejudicadas, mas chegamos a ocupar uma praça pública com uma exposição de artes visuais e, por vezes, a própria Galeria da FAOP registra as exposições em vídeos para divulgação em redes digitais.
Numa época em que vários eventos presenciais foram cancelados, qual a importância de a mostra ser online?
Uma mostra como essa, que reúne tantos artistas e agentes culturais, e tantas diferentes manifestações, traz sempre um fôlego, na medida em que (re)conecta os artistas entre si, os artistas com o público, e permite que a produção cultural e artística dos diferentes lugares atinja outras paragens. E, no caso específico desta mostra, envolvendo nove cidades patrimônio espalhadas pelo Brasil, teremos um panorama bastante amplo e diversificado, traçado a partir do olhar especial de quem vive (n)estas cidades, o que também nos leva a pensar nas inúmeras possibilidades de compartilhamento, parcerias e trocas futuras. E, para o público, sem dúvida é um alento! Até porque, os vídeos mostram que a arte alimenta a vida que alimenta a arte… indefinidamente, ou seja, arte e vida são coextensivas. A compreensão disso pode nos ajudar a lidar com um cotidiano que anda tão à flor da pele, em tempos pandêmicos.
O que o público pode esperar da mostra?
Um breve, porém, significativo, panorama que reúne algumas das manifestações artísticas e culturais que alimentam a vida, a alma, as ruas e o imaginário da histórica – mas também contemporânea – Ouro Preto e seus distritos, ao mesmo tempo em que acontecem e se desenvolvem diretamente influenciadas por suas paisagens e tradições. Sem deixar, entretanto, de gerar reflexões que concernem a questões atuais.
Rachel Falcão é artista plástica, artista pesquisadora e artista educadora. Graduada em Artes Plásticas e em Desenho Arquitetônico pela Universidade Federal de Juiz de Fora, é também especialista em Artes, Cultura Visual e Comunicação, também pela UFJF. Ela é mestre em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, com a pesquisa Interações e Intervenções: a participação do artista contemporâneo em processos de reconfiguração sociais e espaciais. E doutoranda em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG na linha de pesquisa Artes Plásticas, Visuais e Interartes (título provisório da pesquisa: Artista-pesquisador, artista-da-família, artista-cidadão: por uma epistemologia estética). Rachel é professora de Artes Plásticas e Visuais na Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP / 2009-2013 e 2015-atual) e coordenadora do Núcleo de Arte & Ofícios da Fundação de Arte de Ouro Preto. É ainda Idealizadora e Coordenadora Geral do Projeto HABITA VIDA.
Confira os vídeos desta mostra e de todas as atividades da parceria Funarte-UFRJ em https://www.youtube.com/c/ArteDeTodaGente
Fotos de Victória Oliveira