“Contar histórias como quem diz poesia, e dizer poesia como quem conta histórias”, é assim que Mano Melo define seu modo peculiar de interpretação
Lançado em julho de 2020 como parte da série de pocket shows do Bossa Criativa, o vídeo espetáculo do artista segue disponível aqui no site e no canal Arte de Toda Gente no Youtube. Em cena, com roteiro e direção dele mesmo, Mano conta histórias e declama poesias e poemas curtos, seus e de outros autores, sempre com seu estilo inconfundível de interpretar – e “poetizar” – as palavras.
Quase um ano depois, voltamos a conversar com Mano Melo, que nos fala sobre sua formação, carreira, trabalhos e de como está se adaptando ao período de restrições imposto pela pandemia.
Quando começou a paixão pela poesia?
Começou muito cedo, ainda na escola primária. Onde eu estudava, tinha uma vez por mês uma hora de arte, quando alguns alunos cantavam. E havia um aluno que dizia poemas. Ele falava um poema que muito me emocionava, sobre a morte de um cão (segundo a descrição, trata-se do poema Veludo, de Luiz Guimarães), que um pescador levava numa canoa para afogar no mar.
Veludo, cachorro feio e imundo, o mais feio que existia no mundo. Quando ele (o pescador) chegava na praia depois de jogar o cachorro no mar, dava pela falta de um medalhão que sua mãe lhe havia dado para proteção, antes de morrer. Ficava desesperado, pois era o único objeto de sua mãezinha que possuía. Ele pressente uma respiração ao seu lado e percebe que é Veludo, trazendo entre os dentes o medalhão. Ele se emociona, recolhe o objeto da boca do cão, que cai na areia da praia. Ele o sacode: “Veludo, Veludo!”. Estava morto. O intérprete era ovacionado. Aquilo me comovia muito.
Por essa época, menino de Fortaleza, comecei a passar as férias escolares na casa de meu avô, no sertão de Serra Dantas, no Ceará, um lugar inóspito. A casa de meu avô ficava na beira de uma estrada, que ia de Jaguaruana para Mossoró, no Rio Grande do Norte; uma estrada de terra. Por lá passavam boiadeiros, tropas de boi, “jumenteiros” e ciganos, que pediam pousada ao meu avô e pernoitavam entre as árvores. Passavam também muitos poetas nômades, violeiros e repentistas. Quando acontecia, meu avô armava rede na varanda para que pernoitassem e virava uma festa.
Vários camponeses, dos pequenos sítios vizinhos, iam para ver e ouvir as cantorias. Eram servidos café com guloseimas, cachacinhas..,. Eu ficava muito ligado na fala dos poetas. Por aí, passei a ler muitos poetas em livros, cada vez mais interessado, aprendendo também a fazer meus primeiros versos. Passei a escrever e ler muito, principalmente autores nordestinos, como Jorge Amado, Zé Lins e Graciliano (Ramos).
Uma vez escrevi um texto e apresentei num programa de auditório da Rádio Iracema, de Fortaleza. Era um concurso sobre quem escreveria a melhor história comunicando um namoro desfeito. Inventei uma história de um namorado que flagrava sua amada no maior amasso com um soldado de polícia na praça da Lagoinha, conhecido refúgio de amantes nos tempos em que não existiam motéis. A plateia riu muito, aplaudiu de pé e ganhei o primeiro prêmio. Ganhei uma quantia que deu para pagar ingressos para filmes de Tarzan e de caubóis e ainda sobrou para uma penca de histórias em quadrinhos.
Passei a concorrer em vários programas e sempre ganhava. Fiquei muito orgulhoso quando, um dia, ao passar numa rua, ouvi duas menininhas da minha idade conversando e uma me apontou e disse: “aquele ali é o menino que interpreta poesias na rádio”. Me senti um superstar.
Aos 16 anos, vim morar no Rio e fui abrigado na casa de tios. Meu quarto ficou sendo a biblioteca de meu tio, um grande intelectual, médico, e também formado em Filosofia. Em torno de minha cama, estantes com várias obras importantes de literatura e filosofia. Descobri aí dois livros que marcaram minha vida: O Lobo da Estepe, de Herman Hesse e as Poesias Completas de Fernando Pessoa, aquele de papel bíblia da (editora) Aguilar.
Fernando Pessoa foi uma descoberta muito forte, passei a ler quase diariamente e (o poema) Tabacaria me empolgou a ponto de sentir ciúmes se ouvia alguém falando sobre ele. Ficava indignado e, na minha arrogância adolescente, achava era um poema que dissecava minha alma, ninguém o compreenderia melhor do que eu. A partir daí, decidi que o que eu queria ser na vida era poeta, e deveria me dedicar inteiramente a isso. Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke, também me ajudou e influenciou muito.
Além da formação de ator, você também cursou Filosofia na UFRJ. Considera que isso também contribui na criação de sua poesia e no jeito peculiar de interpretar?
Sim, sem dúvida. Em Nietzsche, por exemplo, vi um poeta falando de filosofia com linguagem poética (Assim Falou Zaratustra). E passei a conhecer os poetas gregos, Homero e os poetas trágicos, Sófocles e Eurípedes. Aristóteles, com sua teoria do motor imóvel, me pareceu pura poesia. E passei a detestar Platão, quando vi que em sua república ideal não existia espaço para os poetas.
Meu jeito peculiar de interpretar já são outros quinhentos. Quando fui para a Escola de Teatro (Conservatório Nacional de Teatro, hoje Unirio), me empolgava mais ao interpretar poemas no palco do que propriamente em viver personagens. Fiz provas interpretando Tabacaria e o Poema em Linha Reta. Já no terceiro ano da Escola de Teatro, que cursava em simultâneo à Filosofia, trabalhei por dois anos como auxiliar do Fauzi Arap na Casa das Palmeiras*, da dra. Nise da Silveira. Quando Fauzi viajou à Bahia para o show “Rosa dos Ventos”, da Bethânia, espetáculo de sua direção, fiquei com o grupo só pra mim. Passei a teatralizar o sonho dos pacientes e criei um espaço para eles escreverem e interpretarem seus textos e poemas.
(*) a Casa das Palmeiras era uma clínica voltada à reabilitação de antigos pacientes de instituições psiquiátricas, que tinha como base a expressão da criatividade.
Por essa época, acho que 1971, publiquei meu primeiro livro, O Evangelho de Jimi Rango, rodado no mimeógrafo da Casa das Palmeiras, com ilustrações do José Paixão, grande pintor já falecido, que também trabalhava na casa. Isso muito antes que o mimeógrafo fosse popularizado, antes da chamada “geração mimeógrafo”.
Rodei cem cópias com auxílio dos pacientes, que ajudavam a botar as páginas em ordem e a colar. Dra. Nise me emprestou a chave da casa e passei um fim de semana rodando.
E como foi a reação do público e esse seu trabalho?
Por essa época, Fauzi Arap comandava um encontro de artistas no pequeno Teatro Jovem, do Kléber Santos, que ficava no Mourisco. Um dia, subi ao palco e interpretei o longo poema título do meu livro, O Evangelho de Jimi Rango. Quando saí do palco, uma mulher, aliás muito bonita, chegou e perguntou se eu tinha o poema editado. Falei que preparava uma edição em mimeógrafo, que estava para sair. Expliquei que produzia o livro para fazer dinheiro e assim viajar até a Índia. Não aguentava mais o Brasil de Médici. Ela me deu seu telefone e disse que queria um exemplar quando estivesse pronto, que gostara muito dos versos e de minha forma de interpretar. Vi o seu nome no papel: Clarice. Só percebi que aquela linda mulher era a Clarice Lispector, amiga do Fauzi.
Quando o livro ficou pronto, telefonei e ela me pediu para deixar o livro em sua casa. Era na Rua Gustavo Sampaio, no Leme. Ela me recebeu em sua biblioteca. Ofereceu-me chá. Era uma bela tarde ensolarada de dezembro. E por esta época já estava com a passagem para a Índia comprada. Falei pelos cotovelos, li poemas para ela, que foi muito paciente comigo, jovem poeta de 20 anos de idade. Disse que gostava muito dos poemas e elogiou meu estilo de interpretação. Isto foi definitivo em minha vida, me fez acreditar muito em minha escolha. E nunca mais parei.
Você passou mais de dez anos viajando pelo mundo, o que não falta são histórias para contar. O que prevalece ao escolher as histórias que vai apresentar?
Prevalecem histórias das muitas aventuras que vivi peregrinando pela Ásia, África, Europa e América Latina. Escolho de acordo com as plateias. Percebo as vibrações e vou improvisando. Escrevi um romance a respeito, Viagens e Amores de Scaramouche Araújo, que foi editado pela extinta editora Five Star e teve boa aceitação, esgotou duas tiragens, e hoje só é possível encontrar alguns em sebos virtuais.
Quanto à poesia, o que o inspira a criar?
Tudo me inspira. Fragmentos de pensamentos, pequenos trechos de conversas que ouço na rua, sonhos, memórias, emoções fortes. Uma vez, estava descendo Santa Teresa pela Ladeira Santa Cristina e encontrei numa escada uma criança, ao lado de um cachorro dourado. Ela brincava dizendo: “Era um homem que só andava de bengala e que dizia: apareçam as coisas que se perderam.” Isso me inspirou um poema e um personagem: O Homem de Bengala.
Já O Evangelho de Jimi Rango foi um longo poema que me veio através de um sonho. Acordei no meio da noite com duas palavras na cabeça, Jimi Rango. Escrevi num papel e deixei lá. Uma ou duas noites depois, acordei com o mesmo nome na cabeça, Jimi Rango. Então me levantei e fiz o poema inteiro, bastante longo, quase sem nenhum retoque. Já surgiu pronto. Há coisas mágicas que acontecem sopradas por esta deusa cadela chamada poesia.
Quando você fala do seu jeito singular de interpretar diz que se trata de “contar histórias como quem diz poesia, e dizer poesia como quem conta histórias”. Como é isso?
Tem muito a ver com os poetas repentistas que ouvi na infância. Repare que quase toda poesia cordelista conta uma história. E passei naturalmente a contar histórias através da poesia. Até mesmo porque adoro ouvir e contar histórias, desde pequeno sou assim.
Você fez inúmeros trabalhos como ator na TV e Cinema e sempre tem destaque como poeta, fazendo muitas apresentações ao vivo. O que mais gosta de fazer?
São dois trabalhos diferentes. Quando faço um personagem de novela, por exemplo, estou no meio de uma grande estrutura empresarial, Sempre me senti, nos sets, como se estivesse brincando de Hollywood, com toda aquela parafernália e um montão de gente conhecida em volta. Adoro esse tipo de clima, adoro fazer. Mas interpretar poesia no palco é uma outra coisa. Não estou fazendo personagem, estou me contando direto para o público. A sensação é muito diferente, é um trabalho pessoal, não tem uma grande indústria no meio, não preciso criar personagens, mas apenas ser eu mesmo e minha vontade de transmitir uma mensagem em verso.
Gosto das duas formas, mas com o tempo, dizer poemas se consolidou e fiquei mais conhecido como poeta que interpreta versos do que como ator, mas a base de tudo foi minha formação teatral.
Há alguma poesia ou poema composto na pandemia que gostaria de mencionar?
Durante a pandemia, com a impossibilidade de interpretar poemas ao vivo, me sobrou muito tempo para escrever. Enclausurado em casa, remexi gavetas e descobri uma série de trabalhos inacabados que resolvi levar adiante, foi muito produtivo em escrever coisas novas e desenvolver trabalhos interrompidos. Já fechei quatro livros, dois de poesia, contos, dois livros para crianças, e uma peça de teatro. E tem dois que em que estou trabalhando ainda. É muito louco isso. A paixão pelas palavras é que me faz ir adiante nestes momentos tão difíceis.
O poema que tem mais a ver com este clima é um chamado Espaçomoto. Mas não escrevi durante a pandemia. É um mais antigo, de certa forma uma premonição.
ESPAÇOMOTO*
Sonhei que voava numa espaçomoto colorida
Sobre a cidade maravilhosa destruída,
Com as ondas do mar batendo no teto
Dos prédios de concreto.
Não havia sinal de gente.
Tudo abandonado.
Os sinais acesos
Piscando para carro nenhum
E os neons anunciando para ninguém.
As lojas todas vazias
E as mercadorias
Espalhadas no balcão,
Inúteis.
Discos roupas sapatos
Carros supermercados
Tudo para os ratos.
Foi maremoto
Terremoto,
Ou desilusão
Da Bahia a Nova Iorque
Da Dinamarca aos Açores
Se calaram os pregões das bolsas de lavores.
(*) este poema é declamado no vídeo
Mano Melo é poeta e ator e roteirista para cinema e vídeo. Formado pelo Conservatório Nacional de Teatro, estudou também Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Desde 1979, quando retornou ao Brasil após viajar por dez anos pelo mundo (América Latina, Europa, Ásia e África), tem interpretado seus poemas em teatros, bares, centros culturais, universidades, escolas, eventos e congressos literários e mesmo praças e praias, no Rio de Janeiro e muitas outras cidades.
Fotos: capturas de tela do vídeo