Sete cordas, múltiplos talentos

Luís Filipe de Lima  (na foto de Leonardo Aversa) é um daqueles craques multitalentosos com quem todos os técnicos de time de futebol sonham contar em suas equipes. Virtuoso nas sete cordas do violão e ex-ator de novelas, é também um bamba como arranjador, diretor musical, produtor, jornalista, pesquisador musical, professor (é mestre e doutor em Comunicação e Cultura pela na UFRJ) e escritor. Além de dividir o palco da Mostra Bossa Criativa Arte de Toda Gente, no teatro Dulcina (Rio de Janeiro) com o amigo Pedro Miranda, na próxima quinta-feira, 17/3, a partir das 18h, ele também dará autógrafos no livro Para Ouvir o Samba: Um Século de Sons e Ideias, que está lançando pela Funarte. Nesta bem-humorada entrevista (uma de suas marcas registradas), Luís nos fala um pouco de sua trajetória e sobre um de seus temas preferidos: o samba.

 

Quando, como e por que você se interessou pela música?

Nasci numa família de artistas. Meu pai era o ator e diretor teatral Luís de Lima. Minha mãe, Maria Luiza Splendore, foi bailarina. O contato mais estreito com a música, portanto, foi natural e aconteceu logo cedo, também num tempo em que as rodas de violão eram bastante comuns. Comecei a aprender violão aos sete anos de idade, tocando repertório variado de MPB. Daí passei à flauta, aos onze anos, estudando música barroca, e bandolim, aos 13, tendo aulas com Joel Nascimento e Afonso Machado, oportunidade em que mergulhei no repertório de choro.

Em paralelo, tive experiências como ator, também desde os sete anos de idade. Cheguei a ser filho de Fernanda Montenegro e Fernando Torres no teatro, fiz meia dúzia de novelas, uns tantos programas televisivos, alguns poucos filmes. Na novela Partido Alto, em 1984, Aguinaldo Silva escreveu para mim o papel de um filho de bicheiro que tocava bandolim, sabendo que eu dominava o instrumento.

O ofício de ator não durou muito mais tempo, mas o gosto pela música como ocupação mais consequente, para além do espírito diletante, brotou com esse trabalho em Partido Alto. Ainda tentei seguir outros caminhos. Fiz faculdade de jornalismo, depois emendei no mestrado e no doutorado em Comunicação e Cultura, na UFRJ. Mas hoje só lembro que sou doutor quando o flanelinha grita pra mim: – Deixa solto, doutor!

É como costumo dizer, a música sempre foi muito ciumenta comigo, não me deixou dar muita trela para o jornalismo ou para a carreira acadêmica. Já tocando na noite, em rodas de samba e choro, desde o início da graduação, fui aos poucos encontrando na música meu principal sustento. Do botequim – origem profissional da qual muito me orgulho – passei aos palcos de teatros, às turnês com artistas, às funções de arranjador, diretor musical, produtor de discos, diretor de shows, roteirista e pesquisador.

Você tem formação específica em música?

Embora tenha feito no início dos anos 80 o curso regular de quatro semestres na Escola Villa-Lobos, que corresponde hoje ao diploma de nível médio, estou longe de ser um músico acadêmico. Estudei desde cedo com diversos professores particulares, não só violão, como teoria musical e harmonia funcional. Sempre procurei ler bastante sobre música. Devorava obras com as abordagens mais variadas, em especial material didático. E continuo estudando até hoje! O universo da música é dinâmico, seus limites estão sempre se expandindo. Mas a minha escola mesmo foi o botequim, a noite.

Aprendi repertório de choro e samba já começando a me virar como músico profissional, ouvindo e vendo os mais experientes, a exemplo de Paulão, Valter e Carlinhos, todos com 7 Cordas como sobrenome, Jorge Simas, outro craque dos sete arames. Pelo fato de ter tocado pandeiro profissionalmente durante algum tempo, ao mesmo tempo que o violão, pude conviver em especial com mestres das seis e das sete cordas, o que me fez aprender ainda mais. Já com alguma quilometragem, fui ter aulas com Dino 7 Cordas, o grande patriarca do instrumento, experiência decisiva na minha formação musical. Depois que me tornei produtor de discos e trilhas, dei mais impulso ainda à minha vocação de autodidata e fui estudar assuntos como engenharia de som, as ferramentas digitais dos estúdios de gravação.

O samba, sempre foi seu gênero preferido?

Cresci ouvindo música de tudo que é gênero. Canções de protesto, rock progressivo, iê-iê-iê, Vivaldi, Bach e Beethoven a rodo, cool jazz, bebop, até discos de efeitos sonoros que meu pai usava no teatro. Mas o samba era o que fazia o coração bater mais forte. Estava nos discos, no rádio, na televisão, nos fascículos de coleções que vinham com LPs encartados e que a gente comprava em bancas de jornal. Estava no assobio do pessoal da rua, na batucada vadia dos botequins vizinhos, no laraiá que subia pela janela, principalmente depois das vitórias do Flamengo.

Nasci, me criei e – mais de meio século depois – moro até hoje no Leblon, bairro que acabou virando um certo símbolo de glamour boêmio e cosmopolita, mas que já foi um declarado subúrbio de Ipanema, fim de linha do bonde e do ônibus, um Leblon de aviários, carvoaria, lojas de macumba, inúmeros pontos de bicho, lambe-lambe, comércio modesto. Cheguei quase a pegar o tempo da Independentes do Leblon, uma escola de samba que chegou a desfilar no grupo especial logo antes de acabar, em 1969, quando aconteceu o incêndio criminoso que destruiu a comunidade da Praia do Pinto, onde ela ficava.

Era um outro Leblon e, naquela época, mesmo sem ter o peso histórico e a densidade demográfica de sambistas encontrados em Madureira, Tijuca, Botafogo e muitos outros recantos da cidade, não fazia vergonha. O tempo passou, o Leblon foi virando outra coisa, e nos anos 80 eu comecei a me despencar de ônibus, ainda adolescente, atrás de rodas de samba como a da Tia Doca, em Oswaldo Cruz, ou da roda de choro na casa do velho Claudionor Cruz, na Abolição. Frequentei bastante também as rodas de Botafogo, onde pontificavam nomes como Walter Alfaiate (com quem mais tarde cheguei a tocar em shows), Mauro Duarte, Mical e Zorba Devagar. Daí comecei a tocar nas rodas de samba dos mais novos, na época, sobretudo ao lado de Eduardo Gallotti. Fundamos em 1987 a roda do bar Mandrake, na Muniz Barreto, que durou oito anos e atraía gente como Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Sombrinha e tantos outros. Ali começou minha vida de músico profissional.

O que te motivou a escrever o livro?

O livro é o resultado de uma série de cursos sobre a história do samba urbano carioca que comecei a ministrar desde 2002, quando recebi um primeiro convite do MIS-RJ. Reciclei o curso ao longo desses últimos 20 anos, cheguei a oferecê-lo também em São Paulo, Belo Horizonte, Florianópolis, Londrina e Buenos Aires. A versão mais estendida do curso tem oito aulas de três horas cada e conta com um arquivo Powerpoint com mais de 330 slides – que reúne áudios, vídeos, fotos e pequenos textos estruturados em tópicos. A obra, portanto, é um aprofundamento dessa minha experiência didática, por um lado, mas também apresenta um certo rearranjo do conteúdo, que aqui tem um pouco menos ênfase na história social do samba do que nos cursos.

O livro acabou ganhando essa dimensão maior de guia para os ouvintes de samba, com 210 gravações comentadas de mais de 25 estilos de samba estudados ao longo dos capítulos. Aliás, vale destacar a playlist com todas essas gravações comentadas, além de outras 105 que são apenas citadas no livro (um total de 315 gravações de samba), todas estão disponíveis no meu canal do YouTube, no link http://bit.ly/ParaOuviroSamba.

A ideia central do livro é mostrar que o samba é plural, diverso, representa ideias e agentes sociais bastante diversos e, por vezes, antagônicos. Em termos de temática e forma poética, trama rítmica, padrão melódico, estrutura harmônica, o samba tem um panorama muito vasto e cheio de diversidade a oferecer. Há samba para todos os gostos, todas as tribos, todas as gerações, todas as origens regionais brasileiras.

Quanto tempo levou para terminá-lo?
Comecei a escrever o livro no meio da pandemia, a partir das pesquisas preliminares que tiveram início em outubro de 2020. Engrenei no texto no final de novembro, mas, no início de janeiro, tive um susto enorme: perdi as primeiras 43 páginas dos originais num editor de texto bugado de uma hora para outra, sem que eu tivesse qualquer backup do único arquivo. Levei mais de um mês entre as tentativas de recuperar o material e o desânimo profundo depois que descobri que não era possível remediar a tremenda garoteada.

Fui voltando aos poucos, reescrevendo os textos do zero, e, já no mês de março, estava trabalhando mais de 12 horas por dia no livro, para tirar o atraso. Minha sorte é que as anotações dos cursos continuavam ali, servindo de ponto de partida. Em 18 de maio do ano passado entreguei os originais completos – entre marchas e contramarchas, então, dá uns quatro meses de trabalho contínuo.

Já há uma boa produção acadêmica sobre o samba no Brasil?

Há uma produção cada vez mais sortida de teses, dissertações e artigos sobre o samba que vêm a lume em diversos ramos da academia – História, Antropologia, Música e Comunicação, por exemplo. O universo das escolas de samba, um recorte bastante específico do gênero, parece ainda continuar monopolizando as atenções dos pesquisadores. De qualquer modo, a qualidade e, sobretudo, o volume da produção acadêmica em torno do samba não parecem refletir sua fundamental importância em nossa cultura.

Estamos avançando, mas a academia ainda deve ao samba. Ainda mais quando nos damos conta da tibieza de títulos lançados comercialmente. Se entrarmos em qualquer livraria argentina, nos depararemos com uma generosa estante dedicada ao tango. O mesmo acontece nas livrarias portuguesas, com relação ao fado. Nem é preciso falar sobre os norte-americanos e a copiosa bibliografia sobre o jazz, o rock e a música pop. Precisamos de mais gente qualificada escrevendo sobre o samba.

E como o gênero, como você vê o espaço para o samba dentro da música brasileira, hoje?

O samba já não tem o papel hegemônico que desempenhou por seis ou sete décadas. Mesmo o chamado pagode romântico, surgido nos anos 90, a última flor do Lácio do samba, inculto e Belo (o cantor), já não tem hoje o alcance que tinha há uma década, engolido principalmente pelo sertanejo. Ainda assim, como aconteceu nos anos 90, outro momento de retração dos estilos mais tradicionais de samba (justamente quando o pagode romântico ascendeu vertiginosamente), o gênero continua à espreita, pronto para voltar a uma posição de centralidade, na primeira piscada de olhos do mercado.

O samba, afinal, está hoje embutido na memória afetiva de pelo menos três gerações de brasileiros, de norte a sul do país. E há, mesmo à margem do mainstream, um interesse robusto e permanentemente renovado de várias faixas de público em torno do samba e sua pluralidade de artistas. O samba, em sua diversidade de formatos, não é um produto descartável. Os sambistas de várias tribos têm plena consciência disso.


Que conselho daria para alguém que queira começar sua carreira como músico de samba?

Ouvir. Só toca quem ouve. Só canta quem ouve. Só compõe quem ouve. Só escreve arranjo, só produz disco quem ouve, quem já ouviu muito. Claro, é preciso dar vazão ao impulso criativo logo que ele aparece. Não é para ficar só ouvindo para sempre, à espera de uma epifania. Mas, sim, é preciso ouvir, ouvir em profundidade, desenvolver a escuta, alcançar pelo ouvido a imensa diversidade de sotaques e nuances do samba.

Esse é o caminho mais reto para o desenvolvimento sólido e eloquente da linguagem. Ouvir gravações, ouvir shows, ouvir rodas, desfiles de escolas de samba, bailes de gafieira, blocos de carnaval. Ouvir o samba que você já toca e com o qual tem sintonia plena, mas ouvir também outros estilos: do samba-choro ao samba-coco, do sambalanço ao samba do Estácio, do partido-alto à bossa nova, do pagode carioca dos anos 80 ao samba-rock, do samba-jazz ao samba de terreiro. Até ouvir samba ruim é bom… a gente aprende muito. Também é preciso aprender a ouvir os instrumentos em separado. Comparar as assinaturas de mestres do mesmo instrumento. Ouvir arranjos de gravações diferentes e perceber diferenças de instrumentação, levadas, andamento, harmonização, convenções rítmicas, contracantos, forma da música. E, na hora de tocar ou mesmo cantar, ouvir mais os companheiros do que a si mesmo.

Posso dar vários outros conselhos, como não chegar atrasado, não aumentar demais o volume do retorno, jamais discutir com o técnico de som – mesmo que você tenha razão – , perguntar antes do trabalho, não só quanto você vai ganhar, mas quando o pagamento vai sair, tocar pensando no conjunto e não ter medo nem vergonha de fazer base para os outros aparecerem mais que você. Sempre que for preciso, consumir literatura, visitar museus e aprender a cozinhar. Mas fico só com este: ouçam, ouçam, ouçam muito samba.

E, se puderem, ouçam também corais búlgaros, música concreta, ars antiqua, canção napolitana, o canto gutural dos mongóis e uigures, o contraponto de Bach, as orquestrações de Ravel, ouçam peças para theremin e didgeridoo, o huayno peruano, a guitarra farofa-virtuosa de Malmsteen, o axé, o funk carioca, o sertanejo e o gospel – ouçam música esquisita e fora do alcance imediato, por um lado, e ouçam música de que a gente não gosta, por outro, aquele tipo de música que a gente acha repulsiva, por qualquer razão. Trabalhar com música é, necessariamente, transcender o gosto pessoal. Não só para colecionar referências, como as levadas do Chimbinha, o trompete maravilhosamente anêmico do Chet Baker, o sete-cordas cheio de testosterona do Dino, as letras rascantes do Bob Dylan, o surdo do Gordinho, a voz tonitruante do Monarco, os contracantos geniais de Dona Ivone Lara, o suingue rouco de Elza Soares, a bateria elegante de Wilson das Neves, os erres franceses arranhados de Elizeth Cardoso, o silêncio tão histriônico quanto incômodo de 4’33”, do John Cage, a sofrência melosa capaz de fazer a glicose subir, o funk proibidão que objetifica barbaramente a mulher, os pontos de macumba que são a encarnação de Satanás para os evangélicos, os louvores gospel que, para alguns ateus, beiram a histeria e o fanatismo religioso.

Mas, sobretudo, a gente precisa entender e reconhecer o que faz muita gente gostar daquilo que a gente não gosta. Temos sempre o que aprender com qualquer tipo de linguagem musical. Ah, tem outra: não é bom misturar destilado com fermentado, principalmente quando a gente está tocando.

Como vocês prepararam o repertório do show que apresentam na Mostra no Dulcina?

É um show curtinho, que deve durar cerca de 50 minutos, um aperitivo para a sessão de autógrafos que acontece logo em seguida. São 14 números que o Pedro Miranda canta, passeando por vários estilos de samba e seguindo um pouco a linha do tempo que eles vão percorrendo.

Começamos no samba maxixado da Cidade Nova, estilo que fixou o samba urbano carioca logo no início do século XX, e terminamos com um samba contemporâneo, gravado ano passado pelo próprio Pedro, de autoria dele em parceira com o Cristóvão Bastos. No meio disso tem samba-choro, samba de terreiro, samba sincopado, partido-alto e muito mais. Vou falar um pouquinho entre um samba e outro, contextualizando cada número.

É interessante porque o Pedro estudou bastante violão desde o início da pandemia e está tocando lindamente, então vamos fazer alguns números de dois violões. Às vezes, só ele toca violão e eu acompanho no pandeiro, ou vice-versa. Pedro, com quem tenho muita intimidade musical, é um poliglota do samba, se movimenta muito bem por diversos estilos do gênero. Pensamos depois em desenvolver mais o roteiro e sair com o show por aí.

 

O show

Os ingressos gratuitos para o show com Luís Filipe Lima e Pedro Miranda na Mostra Bossa Criativa Arte de Toda Gente, em 17/3, às 18h, poder ser obtidos em https://bit.ly/3Ms6CU9.

O endereço do Teatro Dulcina é Rua Alcindo Guanabara, nº17 – Cinelândia, Centro – Rio de Janeiro (RJ) – Tel.: (21) 2240-4879

Sobre o livro:

Para Ouvir o Samba: Um Século de Sons e Ideias

Autor: Luís Filipe de Lima. Prefácio: Nei Lopes

Edições Funarte
320 páginas. Tamanho: 16 x 23
ISBN 978-65-5845-005-4
Preço: R$ 40

Obra disponível para aquisição, em todo o Brasil, por meio da Livraria Mário de Andrade (Funarte) – contato: livraria@funarte.gov.br