“Professora, como a gente faz para ser cantora?

A pergunta que dá título a esta matéria estava em uma carta recebida pela cantora de ópera e professora Carolina Faria de uma jovem de cidade no interior da Amazônia, que ficava a 12 horas de barco do conservatório de música mais próximo. E despertou nela o desejo de buscar novas formas de ampliar o alcance do ensino da música. Nesta entrevista exclusiva, a musicista nos fala desse episódio, de sua carreira, projetos e de sua participação na Academia de Ópera Sinos, onde tem como tema “A Ópera como elemento agregador de diferentes formas de expressão artística”.

Como começou sua carreira na música?

Comecei na Escola de Música da UFRJ, onde fiz o bacharelado em Música, e no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no qual cantei por dez anos no coro. Ali fiz meus primeiros solos.

E quando você decidiu se dedicar ao canto lírico?

O canto lírico e a ópera foram um caminho mais ou menos natural: desde as minhas primeiras aulas de canto. Sempre me atraíram a riqueza da experiência humana, a possibilidade de cantar mais que verbalizar os sentimentos, desejos, pensamentos que a literatura musical clássica oferecia. O canto lírico foi um convite a me organizar internamente, visitar meus sentimentos, além de conhecer mais intimamente outros povos e ver o quão todos somos parecidos, e tudo isso vivido através da música. Eu era uma menina fechada, a música foi fundamental na formação e ampliação da minha personalidade.

Você também se dedica à música brasileira colonial, não? Poderia falar um pouco sobre esse tipo de música?

A Música Colonial Brasileira foi aquela realizada no período que antecedeu o transplante da corte portuguesa para o Brasil e sua declaração de independência, no período chamado Brasil-Colônia. Passo aqui um link do Música Brasilis explicando em maiores detalhes para quem quiser se informar (https://musicabrasilis.org.br/temas/musica-colonial-brasileira), e um link para uma apresentação minha, meu o solo de contralto da missa de Réquiem do Padre José Mauricio Nunes Garcia – https://www.youtube.com/watch?v=fbjGmWmEoxY&t=42s&ab_channel=KuhlauDilfeng3

A música popular também faz parte do seu repertório? Você considera que o aprendizado de canto lírico ajuda ou pode prejudicar a performance de um cantor popular, já que são técnicas diferentes?

Tobias Volkmann, regência Carolina Faria, mezzo-soprano | Corrado Licio Bruno, baixo-barítono

Sim, a música popular faz parte do meu repertório. Cantei um pouco com big band, fiz alguns shows de bossa nova como crossover (quando a gente usa uma técnica intermediária entre lírico e popular). O canto do seu povo não pode e não deve prejudicar a formação de um artista clássico de carreira, muito pelo contrário. Porque a cultura materna naturalmente antecede toda formação, toda escola. Mas, veja, seguir as duas carreiras simultaneamente eu já consideraria complicado, porque a gente ajusta a voz para soar de maneira acústica, no teatro ou sala de concerto, e sem o auxílio de amplificação. O canto popular no século XXI é feito e ajustado para o microfone, utilizando a voz de uma outra maneira, e uma hora eu precisei escolher. De toda forma, acredito que todo bom cantor deve conhecer e reverenciar o canto tradicional de sua terra.

Qualquer um pode aprender canto lírico ou é algo que deve ser iniciado ainda na adolescência, por exemplo?

Cantar é um ato de conexão de todas as faculdades físicas, mentais e emocionais; promotor da saúde física, emocional e social do indivíduo. O canto lírico leva essa conexão a um nível máximo. Todos são convidados a estudar, nem que seja um pouco, o suficiente para aprender a respirar corretamente, conectar-se com seu corpo e os sentidos, ser capaz de se expressar e dar voz a seus sentimentos. Quanto à profissionalização, o ideal é que a pessoa ingresse nos estudos o quanto antes após a puberdade, contudo há casos de gente que começou tarde e seguiu uma bela carreira. Uma carreira profissional em ópera é feita de muitos fatores, o fator idade pode ser mais ou menos preponderante, dependendo do caso.

Você tem um podcast chamado O Chazinho, fale um pouco dele. Nada mais clássico do que um chá com ópera. Qual a proposta do podcast?

O Chazinho foi um projeto-piloto de podcast, resultado da minha participação no Arte Sônica Amplificada, um projeto de alavancagem de lideranças femininas na área da música de iniciativa do British Council e Oi Futuro, em 2018. Eu já havia realizado por dois anos o Projeto Boa Chance, de escuta às necessidades e busca de respostas concretas às dúvidas que vinham de todos os lados do país, e queria entender como me comunicar de maneira mais efetiva com meu público – estudantes e aspirantes à carreira em canto lírico. Inscrevi o Boa Chance no processo de seleção para o ASA e acabei criando o Chazinho como piloto de comunicação em geral, tocando uma gama mais ampla de assuntos ao lado da Ana Luiza Toledo, compositora e musicoterapeuta.

Após o Chazinho, ainda editei o Mandala Sete, com o soprano paraense radicado em Berlim Adriane Queiroz. Nosso intuito no Mandala era falar para os artistas mais maduros, de certa forma produzindo um resgate da motivação de se cantar perante os desafios da carreira e da pandemia da Covid-19. São todos projetos de comunicação interligados, e eu particularmente amo o conceito do podcast, do audiolivro. Já ensino online há quase uma década e acho preciosa a possibilidade de se ter na sala de aula virtual gente que, se não fosse online, jamais poderia estar conosco. São formas de chegar até essas pessoas e promover uma ampliação de horizontes de quem fala e de quem escuta, e o podcast está dentro desse ideal de comunicação.

Em que consistia o Projeto Boa Chance? Há previsão de retomar esse projeto ou, quem sabe, recriar outro em parceria com o ATG?

Este é um xodó da minha carreira e tenho algumas histórias preciosas para compartilhar. O projeto Boa Chance nasceu quando um dia uma jovem me escreveu indagando: ‘Professora, como a gente faz para ser uma cantora e professora como a senhora?’. E eu, muito ingenuamente e sem saber de onde ela falava, respondi: ‘comece inscrevendo-se no conservatório mais próximo!’, ao que ela respondeu que o conservatório mais próximo ficava a 12 horas de barco da sua cidade! Imperatriz do Pará é uma cidade amazônica, e hoje que coordeno a academia de Ópera do Theatro da Paz em Belém do Pará (a tal cidade a 12h de Imperatriz). Digo que aqui na Amazônia as distâncias, mesmo entre localidades vizinhas, são longuíssimas e muitas vezes dificílimas de se percorrer.

Ao ler a resposta da jovem, entendi o tamanho do meu privilégio e que era chegada minha hora de compartilhar. Decidi que responderia publicamente àquela pergunta e a todas as outras que mais surgissem, e assim nasceu o Projeto Boa Chance. Recebi a partir dali uma chuva de perguntas, que encaminhava à pessoa na minha rede de conexões que tivesse vivido em sua própria vida a resposta àquele questionamento. Por exemplo: em ‘Como fazer a transição do heavy metal para a ópera?’ Conversei com barítono Rodrigo Esteves; em ‘Como iniciar uma carreira na regência, mesmo sendo mulher? Como lidar com um mercado feito apenas de homens’, a Ligia Amadio graciosamente nos respondeu – e veja você como as coisas têm mudado e para melhor para nossas regentes.

O resultado dos anos de projeto foi muito positivo, pudemos oferecer um mapa para quem quisesse ingressar nesta vida com menos desinformação e mais investimento certo.

E se eu retomaria o Boa Chance ou algo do gênero para o Arte de Toda Gente? A resposta é um imediato e retumbante SIM!

A que público se destina a oficina de canto que você ministra dentro do projeto Sinos, que faz parte do Arte de Toda Gente?

Criei minha série de aulas tendo em mente gente que vive afastada dos grandes centros, que talvez nunca tenha assistido a uma ópera montada ao vivo, já faz música na sua localidade e que deseja começar a produzir. É um contato introdutório, feito para puxar assunto e oferecer ao nosso interlocutor noções essenciais. E estou à disposição para ajudar e continuar trabalhando na curiosidade e dúvidas dos alunos!

Quais dicas você daria para um aspirante a cantor que quer iniciar sua carreira profissional?

Tenha paciência e coragem, trabalhe com dedicação e humildade. Não tema errar, começar de novo, investigar-se e manter-se aberto. A jornada da arte é a jornada da vida, as duas andam juntas, evoluem juntas.

Além de toda a formação musical você também é formada em Psicologia Positiva, como ela pode ser aplicada nesse momento de retomada pós-pandemia?

Conhecer os parâmetros e ações promotoras de felicidade nos ajuda na tomada de decisões, a perceber onde começa e onde termina a segurança psicológica no ambiente onde estamos e pelo qual somos responsáveis. Nestes anos após a pandemia estamos emergindo para um mundo novo, ainda mais diferente e mutável do que aquele que deixamos para trás em 2019, e a arte pode ser a grande chave de compreensão e de saída desta angústia coletiva.

Mas, se os artistas são tão importantes neste momento, quem cuida dos artistas? Como lidar com eles de maneira que entreguem o que a sociedade realmente precisa? Creio que a forma de se pensar os grupos no âmbito educacional e das orquestras precisa ser mais bem saudável do que vem sendo, e aconselho a todos os líderes de grupos e professores que se debrucem sobre este assunto.

Felicidade parece um tema simples e superficial, mas não é, passa longe daquela felicidade de Instagram. É um estudo sério a nível mundial, com dados robustos que nos preparam para errar menos.

O que diria para aqueles que sonham em se tornarem cantores profissionais, mas acham que não têm chance, que já passaram da idade, que não têm talento, que será difícil atingirem um determinado nível de aprendizado e/ou conquistarem o público?

Eu diria que o direito a ir em busca da arte que mora dentro de você é inalienável, ninguém pode lhe tirar. Existem carreiras locais, nacionais, internacionais, solo, em grupo, e cada uma delas oferece dádivas e desafios: vá em busca do que hoje lhe é possível e você pode se surpreender com os resultados. Através de minha experiência aprendi que o importante nesta carreira são uma dedicação humilde à arte e a obediência à motivação de alcançar as pessoas. Dê o primeiro passo e peça ajuda, os caminhos vão se fazendo.

Carolina Faria, natural de São Gonçalo (RJ), é bacharel em Música pela UFRJ. Cantora lírica e professora de canto, iniciou sua vida artística profissional aos 19 anos no coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no Ensemble Vocal Calíope e atuando como solista convidada junto às orquestras, salas de concerto e casas de ópera brasileiras. Estreou como protagonista em ópera aos 24 anos como Romeo em “I Capuleti e i Montecchi” de Vincenzo Bellini, em produção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Destacam-se em sua trajetória os papeis de Bradamante na ‘Alcina’ de Händel, Baba the Turk em ‘The Rake’s Progress’ de Stravinsky, Hermia em ‘A Midsummer Night’s Dream’ de Britten, Donna Elvira no ‘Don Giovanni’ de Mozart, Carmen em ‘La Tragédie de Carmen’ de Bizet-Constant e Herodias na ‘Salomé’ de Richard Strauss. Possui vasto repertório em ópera, oratório, canção sinfônica, música de câmera e vanguarda, com especial ênfase à Música Brasileira Colonial.

A cantora de ópera e professora de canto Carolina Faria apresenta a videoaula Vozes na nova série da Academia de Ópera Sinos, lançada no dia 11/05, que tem como tema “A Ópera como elemento agregador de diferentes formas de expressão artística”. Saiba mais em: https://sinos.art.br/noticias/musica-danca-e-teatro-unidos-pela-opera/

Assista as videoaulas e apresentações da Academia de Ópera Sinos aqui no site e no canal Arte de Toda Gente no Youtube https://www.youtube.com/artedetodagente