Presente nas duas partes do vídeo do projeto Afro Funk Brasil, disponível aqui no site, a dupla Antonio Carlos e Jocafi faz parte da brilhante constelação de artistas brasileiros que surgiram na virada dos anos 1960 para os 1970. Nesta entrevista, Jocafi fala sobre sua carreira, projetos e da relação artística que mantém com músicos mais jovens.
Como foi o início da sua carreira na música?
Isso vem desde quando tinha 18 anos. Eu comecei muito tarde, embora sempre tenha gostado de música. Nunca imaginei que um dia seria compositor, letrista ou as duas coisas. Eu entrei na música por causa de João Gilberto, que sempre foi meu ídolo, ele foi quem “me puxou”. Eu cantava e comecei a fazer serenatas. Gostava de cantar como minha mãe, que adorava cantar.
Ia também para o sítio de um amigo nosso e o pai dele, quando terminava o almoço, ficava ouvindo música erudita. Acabei me apaixonando. Conheci quase toda a música erudita que se fez no mundo, porque era uma coisa linda o que eu ouvia lá.
À noite, a gente fazia serenatas. E tinha o Guilherme, um amigo nosso, que tocava violão. Eu não sabia tocar nada. Ele tocava e a gente cantava serestas. Aí comecei a cantar. E com esse trio a gente chegou a ensaiar para cantar num programa de calouros na televisão, mas nunca fomos.
Até que numa briga daquelas de trio, que sempre tem, ele disse: “Olha, eu é que mando aqui, porque o único que toca violão aqui sou eu”. Ai, eu cheguei para ele e disse: “Vou comprar um violão à prestação”. Eu era funcionário público. “vou aprender, vou tocar melhor do que você!”.
E entrei nisso porque adorava a maneira de tocar violão do João Gilberto, aprendi tocando Bossa Nova. E depois fui pupilo de um grande violinista da Bahia, que não tinha tempo para ensinar ninguém, pois fazia muita coisa, como arranjos. Tocava na orquestra de Carlos Lacerda, que é guru musical de todos nós da Bahia.
Depois entrei nos festivais. Aprendi o violão para compor e comecei a fazer isso. Eu achava que o mais bonito de tudo era a composição, era a letra. E assim foi que começou a minha vida profissional.
Naquele tempo ainda estava me preparando para a faculdade. Eu fiz Direito, mas não terminei, no 3º ano eu abandonei por causa da Música. Já estava ganhando muito dinheiro com música na Bahia mesmo. Aliás, quando o compositor sai da Bahia para vir para o sul, ele já é sucesso na terra dele. Ele nunca sai à toa. Foi assim que eu comecei.
E de onde veio o ritmo afro funk? Qual era o diferencial?
Isso aí vem de ensinamentos que a gente obtém de ouvir muito. Eu ouvia, conhecia quase todo o cancioneiro brasileiro. Caetano (Veloso) conhece mais. Acho que ninguém bate Caetano, que é uma sumidade, conhece tudo, tanto o que se se fez lá atrás, no início, quanto hoje. Eu sou a mesma coisa, ouço tudo, como esses funks doidos que fazem aqui. Mas nesse caso, é ensinamento.
Quando comecei a compor com Antonio Carlos, a gente queria alguma coisa que se parecesse com a música internacional. Eu sempre quis fazer música para o mundo, não queria fazer música só para o Brasil. Acho que o compositor faz música para o mundo, e não somente para uma região, para alguns amigos. O prazer de compor é o maior prazer, é incomensurável!
Eu pegava a guitarra e o Antonio Carlos fazia o baixo. Então começamos a fazer músicas de ritmo. A gente não quis fazer o afro funk. O funk já era funk na época. Não foi intencional, o compositor vai fazendo. Ele não sabe se está começando alguma coisa. Você vê que João Gilberto nunca se intitulou, nunca aceitou ser chamado de um dos pais da bossa nova. Ele achava que a bossa nova era qualquer coisa, dizia: “Eu gosto de samba, eu toco samba, eu faço samba”. Ele, junto com Tom Jobim e outros, criou o maior movimento musical que esse país já fez. O afro funk veio por acaso, porque veio alguém e deu um nome.
O Antônio Carlos, a princípio, não gostava muito. Ele gostava de toada moderna, sempre foi fã de Milton Nascimento. No começo, ele tinha uma banda de rock, quem fez ele gostar de samba fui eu.
O samba é a maior manifestação cultural de música do Brasil, a música popular brasileira, vinda da raça negra. Hoje em dia, a gente tem que dizer negro. Eu sou sarará, sou neto de um preto que se encantou com uma loira. Eu não tive o prazer de conhecê-lo e ele teve minha mãe sarará e minha tia, que era uma mulata lindíssima.
O afro funk é de quando a mídia disse: “Vocês estão fazendo afro funk”, muito depois.
Como eram os festivais de que vocês participaram, o que havia de especial? Você sente falta de eventos assim hoje em dia?
Eu sinto falta de festival, principalmente para os artistas que estão começando agora Os músicos, os bons compositores não têm oportunidade de mostrar a cara. Quando o festival entra, a MPB sobe e cresce. Mas acontece que os festivais, no final, já eram manipulados, os produtores começaram a colocar somente aqueles artistas que “tinham nome”, esquecendo-se daqueles que estavam começando a carreira. Não era mais um festival dos novos.
Antes, ninguém conhecia você, você ganhava um festival, como o Internacional da Canção, no qual ninguém me conhecia direito ainda. A não ser porque tinha a música Você Abusou, Mas que Doidice, que já era sucesso, mas eu me lembro que eu não era conhecido no país inteiro. Quando acabou aquele festival de 1971, o “meu festival”, foi uma loucura! Não tirei 1º lugar, fui 2º, mas o povo no Maracanãzinho todo cantou junto na final. Porque você cantava a primeira vez, a música inédita, e daí em diante você gravava e o rádio tocava durante todo o tempo em que o festival durava. Quando chegava na final, já tinha meio caminho andado.
A gente se assustou mesmo, quando cantou na final e o povão cantou junto, 20 mil pessoas cantando no Maracanãzinho. Todo mundo apertadinho e os estudantes lá querendo vaiar o 1º lugar. E a gente pedindo a Deus para não tirar o 1º, senão ia tomar uma vaia, assim como Tom Jobim e Chico Buarque levaram uma vaia estrepitosa, injusta, com o Sabiá, que era uma música lindíssima.
Com as novas tecnologias é mais fácil ser um músico independente? Era mais fácil decolar uma carreira naquela época ou agora?
Naquele tempo era muito bem definido. Hoje, eu acho que é muito mais difícil até para quem já tem nome. Quando criaram os CDs, os piratas tomaram conta, pois este era muito mais fácil de fazer do que o “bolachão”, um LP de vinil. Para fazer um “bolachão” você tinha que ter uma fábrica, e não dá para falsificar uma fábrica. Mas o vinil fica para o resto da vida, é um investimento.
É muito mais difícil hoje para começar se você não tiver muito conhecimento, se você não entrar no meio de cabeça. Não é escrevendo uma música, como era no nosso tempo, em que ninguém me conhecia e fiz uma música que foi julgada por Jorge Amado e outros, Menina do Tororó, uma marcha rancho. E eu cantava com aquela voz… imitava João (Gilberto). E eles gostaram da minha voz doce e me colocaram em 5º lugar. Não tive a sorte de estar em 1º, mas esse 5º lugar já foi uma força incrível, e aí eu embarquei.
Como surgiu o projeto Afro Funk Brasil?
O Afro Funk Brasil é um projeto que a Márcia Belchior, nossa empresária, criou com os meninos do Forte Copacabana, que é a escola em que a gente ensina música. Eu sou o presidente dessa ONG, que criei para meninos da classe mais fraca do país, meninos muito talentosos, que nos surpreendem. Eles nos convidaram e entramos de cabeça. Gravamos quatro músicas até agora, mas ficaram tão boas, que decidimos fazer um LP, um vinil. É uma coisa louca, vai ser lindo. Eu estou achando sensacional!
E o que você acha da parceria desse projeto com o Bossa Criativa?
Tudo aquilo que vier para ensinar música, que é a arte primeira, será muito bem-vindo. No nosso caso, tenho que lhe dizer que a gente sempre pensou que o músico não tem que só aprender a música, no estudo, aquela coisa didática. Você tem que “ver” o seu som, seu instrumento, que aí você vai melhorando, se aperfeiçoando. Tem que ter alguma coisa que o leve para frente, para cima, Muitos meninos que saem do nosso grupo já entram em orquestras, são aceitos porque são talentosos e já testaram o som deles dentro de uma disciplina e de uma liberdade total de criação.
Você influenciou músicos de diferentes gerações, diferentes estilos, e atualmente tem uma parceria com o BaianaSystem. Como você vê essas interações e como tem sido essa nova fase, esse intercâmbio de gerações?
É uma loucura porque esses meninos de alguma forma deram um impulso à velhice da gente. Eu tenho uma velhice feliz, alegre, produtiva. Talvez esteja compondo melhor agora do que no início da minha carreira. Se você ouvir o que a gente está fazendo, trabalhando com o Russo Passapusso, que é um dos líderes do BaianaSystem, vai notar que é de um avanço, Ele “reensinou” a gente a trabalhar.
Eu estava ouvindo uma música que nós gravamos, chamada Miçanga, que me levou às lágrimas. Eu fiz aquilo como se fosse uma musiquinha “sem vergonha”. De repente, quando ela entra, quando eles tocam, ela vira uma coisa linda, aquele peso, aquela poesia, a maneira de cantar, os vocais… Eu achei aquilo surpreendente. E são meninos que estão começando a carreira deles, são fantásticos esses garotos!
Eles usam toda uma mentalidade internacional. A Bahia está fazendo música para o mundo inteiro. Eu só admito música baiana por isso, que é um pós-axé, mas eles nunca disseram que axé é feio, nem falaram mal de um trio elétrico, porque o trio elétrico é o começo de toda a vida baiana. O trio elétrico é um acontecimento fantástico também, e eles usam guitarra baiana, como ninguém.
Eles eram fãs da gente, ouviam nossos discos e é interessante, depois que está com mais de cinquenta anos de carreira, ouvir os garotos dizerem para você: “meu mestre eu aprendi tudo com você”. Você se emociona. Dizem: “eu quero trabalhar com você” e fazem a gente virar menino como eles. Eu me sinto tão feliz quando estou ao redor deles, junto com eles, é uma alegria, aquele riso de pós-adolescente. Uma musicalidade linda, um maestro muito bom, o Bira, Ubiratan, fantástico e novinho também. Mas a qualidade harmônica, a qualidade dos arranjos… Para ganhar um Grammy, não é todo mundo*. E eles são meninos ainda, não é brincadeira!
(*) O BaianaSystem ganhou o Grammy Latino de melhor álbum de 2019 com “O futuro não demora”.
Assista os vídeos do Afro Funk Brasil aqui no site do Bossa Criativa.