Uma entrevista com Fábio Presgrave (foto), violoncelista, coordenador e professor do projeto Aldo Parisot – direcionado a meninas dos 10 aos 15 anos de idade de Seridó e Jucurutu (RN) – em parceria com o Sinos.
Uma verdadeira transformação por meio da música está em curso no interior do Rio Grande do Norte. Participantes do projeto Aldo Parisot, meninas de entre 10 e 15 anos de idade estão aprendendo a tocar instrumentos de corda e, mais que isso, estão se empoderando como mulheres e cidadãs e sonhando com um futuro bem diferente – e melhor – do que lhes parecia destinado. Nesta entrevista, o professor e violoncelista Fábio Presgrave, entusiasmado coordenador do projeto, fala sobre sua trajetória pessoal e, também dessa iniciativa, fruto da parceria entre a Escola de Música (EMUFRN), o Sistema Nacional de Orquestras Sociais – Sinos (Funarte – UFRJ), o Centro de Ensino Superior do Seridó (Ceres) e os Institutos Federais de Caicó e Jucurutu.
Como surgiu o projeto Aldo Parisot e quais são seus objetivos principais? A tradição musical da região favorece esse tipo de iniciativa?
O projeto nasceu de uma necessidade que a escola de Música da UFRN vinha sentindo, de disseminar os instrumentos de corda no interior do Estado, como violino, viola e violoncelo, além do contrabaixo, que ainda não entrou no projeto.
O Rio Grande do Norte tem uma história magnífica com a música no início do século XX. Claro que foi mais localizada em Natal, com a música de concerto. Foi daí que surgiu a ideia de homenagear Aldo Parisot (1918-2018), que é esse verdadeiro gigante da música. Ele nasceu e estudou em Natal e, depois, foi ser solista das Filarmônicas de Berlim, Viena e Nova York… O projeto foi uma união desses dois impulsos.
Decidimos, então, focar nas meninas. O interior do Rio Grande no Norte tem uma taxa de gravidez adolescente ainda muito alta. Isso resulta em muita dificuldade para essas meninas estudarem, darem prosseguimento a uma vida profissional e nós, que viemos dos trabalhos sociais, temos a convicção da importância da música na formação dos jovens para a vida.
Como foi a reação da comunidade local à proposta do projeto?
Tivemos sorte, pois a Secretaria Municipal de Educação de Caicó se identificou muito com o projeto e prontamente colocou-se à disposição; assim com o Instituto Federal de Jucurutu, cidade vizinha. Assim, o projeto se desenvolve em Caicó e Jucurutu – onde uma parte das meninas também aprende violino, viola e violoncelo.
Fora isso, logo no primeiro concerto que os professores fizeram para divulgar os instrumentos nas escolas, o sucesso foi muito grande. Aquelas crianças nunca tinham sequer visto pessoalmente um violino, um violoncelo, uma viola… era tudo uma novidade imensa!
Qual o perfil das meninas participantes? Elas tinham alguma formação musical prévia?
As meninas não tinham nenhuma formação musical anterior, menos ainda em instrumentos de corda, porque não existiam lá. A região do Seridó, apesar de ser culturalmente riquíssima, não possuía, até então, esses instrumentos para as crianças aprenderem. Ou seja, tudo o que estão fazendo agora é fruto do projeto.
Como tem sido o engajamento, a participação nas atividades do projeto?
Nossa felicidade é dizer que o engajamento é altíssimo! Elas frequentam as aulas dos instrumentos durante a semana e, no sábado, se juntam para a orquestra. A a gente já nota um vínculo muito forte entre elas mesma e com os professores. São pouquíssimos os casos de gente que não foi à frente – o que é normal, por não se identificar com o instrumento, com o estudo, mas são raríssimos os casos.
Você poderia mencionar exemplos de como essa participação tem impacto em suas vidas e, de um modo mais amplo, nas comunidades em que se desenvolve?
O impacto do projeto na vida delas já é notável! Várias vêm com histórias que elas mesmas criam, ligadas ao empoderamento feminino. Elas já começam a ter planos, algumas falam que querem estudar na UFRN.
Uma coisa muito importante é que a UFRN, e especialmente o campus de Caicó, acolheu também o projeto de corpo e alma e essas meninas, que apresentam condições de vulnerabilidade, hoje circulam no campus três vezes por semana para suas atividades. A UFRN é uma coisa que estava muito longe das pretensões delas e, hoje, elas dominam o campus, sabem onde fica tudo, se sentem em casa. Isso, por exemplo, já traz um impacto imenso na vida delas. Não sei quando, de outra forma, essas meninas entrariam na UFRN, até para visitar alguma coisa. Isso, por si só, já gera uma perspectiva.
Quais são os próximos passos da iniciativa? Há alguma nova apresentação programada?
Esse é um projeto que tem vários pais e mães. Tem a UFRN, tanto com a escola de Música como com o Centro de Ensino Superior do Seridó – Ceres, que mantém o campus de Caicó; os institutos federais de Caicó e de Jucurutu. E tem o Sinos, parceria entre a Funarte e a UFRJ, que nos deu a felicidade de renovar o projeto por mais um ano. Ou seja, garantimos que as meninas continuarão a ter aulas por mais um tempo e a ideia esse ano é consolidar o que já há e, quiçá, expandir.
Agora vamos falar um pouco sobre sua trajetória. Onde você nasceu e quando passou a se interessar por música? O violoncelo foi sua primeira escolha como instrumento?
Nasci no Rio de Janeiro, venho de uma família na qual a música sempre fez parte da nossa vivência. Meu pai é organista, apesar de ser engenheiro também, e minha mãe levou a gente para estudar música desde muito cedo. Comecei no piano e, inclusive, cheguei a fazer concurso e tudo mais. Aos 12 anos, comecei a estudar violoncelo, porque minha prima é violinista e uma professora maravilhosa. Ela tem uma escola Suzuki* e, lá, trabalhava o Fernando Bru, meu primeiro professor. Ele é o melhor professor que alguém pode ter, porque sabe como motivar e, ao mesmo tempo, cobrar.
Dois anos e meio depois, entrei para o Rio Cello Ensemble, um grupo profissional. E comecei a carreira cedo, “na Disneylândia”, basicamente, porque o grupo tocava com a Nana Caymmi, com Milton Nascimento, Wagner Tiso… era um espetáculo e eu estava junto com Márcio Eymard Mallard, David Chew, essa turma toda.
*Escola Suzuki – Escola de música com metodologia diferenciada das tradicionais. Aula para todas as idades. Violino, violão, piano, canto, flauta doce, violoncelo, contrabaixo e musicalização infantil (fonte: https://escolasuzuki.com.br/).
Como você concilia suas carreiras de instrumentista e acadêmica?
Conciliar a carreira acadêmica com a de instrumentista, por um lado, é um desafio pela questão de tempo. O instrumento demanda muito. Por outro, é um bom desafio, porque, como a academia aparece com várias coisas interessantes, a gente acaba transformando um pouco a nossa carreira, dando novos papéis, por exemplo, ao violoncelo, não só na sala de concerto. Eu até fiz um artigo para a revista da USP*, há pouco tempo, falando sobre minha atuação nos hospitais na pandemia, de como isso impactou a minha vida como artista.
E também, por exemplo, quando a gente começou o projeto em Caicó, eu tive que me atualizar com uma série de coisas em termos de educação musical básica, do que está se fazendo no resto do mundo, onde estão as iniciativas interessantes. Então, apesar da questão do tempo, as duas atividades se realimentam, e elas fazem a gente ter mais disposição.
(*) Leia o artigo de Fábio em https://www.revistas.usp.br/revistamusica/article/view/179789
Você chegou a conviver com o homenageado pelo projeto, Aldo Parisot?
Conheci professor Parisot em Nova York, mas quando eu estudava lá eu não tive contato com ele, pois estudava com outro professor e tinha somente contatos esporádicos. Mas, depois que eu mudei para Natal, ele ficou muito interessado no movimento do cello (violoncelo) na cidade, acompanhou tudo muito de perto. Cheguei a visitá-lo e ele ficou muito empolgado! Contava suas histórias com Villa-Lobos e com as Filarmônicas de Nova York, Berlim, Viena,. Falava das saudades que ele tinha de Natal, que eram muitas. Tive um convívio de alguns anos, já mais para o final da vida dele, mas que foi um convívio muito afetivo e muito inspirador.
Como está sendo sua experiência pessoal com o projeto e quais são suas expectativas?
Esse projeto do professor Aldo Parisot é uma das minhas lições de vida para os próximos anos. A gente, que é músico, que toca um instrumento criado há quase 300 anos, se questiona muito sobre o que ele significa nos dias de hoje. Então, quando uma criança, uma menina em Caicó, pega um violino e se encanta, e muda sua vida, a resposta já está dada, acima de qualquer questionamento artístico, cultural, ou o que quer que seja. Assim, a expectativa é que em breve, assim como o interior do Rio Grande do Norte tem muitas bandas, surjam orquestras jovens no interior do Estado.
Que conselho daria a um jovem que deseja seguir a carreia como músico instrumentista?
Conselhos para um jovem instrumentista: amar a música em primeiro lugar, não importa qual estilo, curiosidade, curiosidade. É sempre muito interessante, quem vem de tradição clássica, começar a aprender o que é o samba, o que é o choro, o que é a música africana, o que é a música da Ásia. E tentar interagir com artistas, é isso que mantém vivo o nosso amor pela música. Pois é claro que, no início da vida, tem um pouco do aspecto competitivo, de afirmação na profissão. Mas depois que isso passa, a gente precisa ter conteúdo, e o conteúdo vem de amar a música, não somente aquela que a gente faz, mas de forma geral, e da nossa curiosidade.
Participantes do projeto
Confira abaixo depoimentos de aluna e professora participantes do projeto gravadas em 2022, durante as atividades do projeto em Caicó.
A aluna fala da motivação em seguir no projeto e do interesse pelos instrumentos. Pelo depoimento é possível perceber o impacto das apresentações e do projeto para ela.
Depoimento de musicista e professora do projeto, Victoria Liz, que fala do “empenho mil”, das participantes. Elas “vivem nos impressionando cada dia mais”, afirma.
A professora acredita que, tendo em vista os bons resultados do projeto, é provável que até algumas alunas que saíram, retornem. Ela reforça que uma das ideias do projeto é levar músicas da própria região do Seridó para as apresentações, assim as estudantes estarão também, de certa forma, aprendendo História. Ela lembra que as apresentações misturam elementos do erudito e do popular e abrem espaço para as estudantes serem mais criativas.
Em depoimento, a representante do secretário municipal de educação reafirma a parceria com o projeto e a continuidade do mesmo.
Sobre Aldo Parisot
Aldo Simões Parisot foi um potiguar ilustre. Nascido em Natal, estudou música com seu padrasto Thomaz Babini e atuou como solista de diversas orquestras filarmônicas. Foi professor catedrático da Universidade de Yale por mais de 60 anos e membro do corpo docente da escola de música nova-iorquina Juilliard School. Parisot é um patrimônio do povo potiguar e um exemplo de trajetória de vida para a juventude.
Fábio Soren Presgrave
Professor de Violoncelo da UFRN. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música da UFRN. Bacharel e Mestre pela Juilliard School, Doutor pela Unicamp. Solista em orquestras como Qatar Philarmonic, Orquestra Filarmônica de Rosário (Argentina), Orquestra Sinfônica Brasileira, Minas Gerais, Campinas, Bahia, Porto Alegre e Sergipe, entre outras.