Circo, magia que transforma vidas

Autora do livro Encircopédia – Dicionário Crítico Ilustrado do Circo no Brasil, a artista e pesquisadora Sula Mavrudis (foto) é também a curadora da Grande EnCIRCOpédia Virtual do Bossa Criativa, projeto que reúne mais de 80 vídeos com histórias, depoimentos e apresentações de artistas circenses de todo o país. Nesta entrevista, ela nos fala sobre a iniciativa.

Como surgiu a EnCIRCOpédia?

A EnCIRCOpédia é resultado da necessidade de se fazer conhecer a realidade do circo além do picadeiro e assim contribuir para a criação e implementação de políticas para o circo em Minas Gerais e no Brasil.

Após praticamente uma vida inteira convivendo com famílias tradicionais circenses e atuando nas diversas esferas da política cultural em favor dos povos e comunidades tradicionais dos circos itinerantes, eu havia produzido muitos documentos sobre as especificidades deste segmento. Documentos que foram produzidos para suprir a necessidade de informações do mesmo, pois, embora seja um segmento artístico milenar, pouco ainda se sabe do povo que vive exclusivamente da apresentação do espetáculo circense. Um povo nômade dividido em inúmeras comunidades que, com seus circos, percorre o país. Um povo que vive exclusivamente da bilheteria de seu espetáculo e que tem o seu próprio modo de vida e sua maneira de transmitir seus saberes e costumes, de geração à geração, por tradição oral, na prática do dia a dia.

A mesma articulação em favor do circo me fez produzir ao longo dos anos muitos estudos, mapeamentos, dossiês, ofícios, petições e representações públicas, direcionados majoritariamente aos gestores públicos e legisladores, almejando que estes, ao conhecerem mais sobre o mundo do circo, pudessem entender e atender a sua necessidade de legislação e política públicas específicas.

Isso me levou a produzir a EnCIRCOpédia, juntando em um só livro boa parte desses estudos e pesquisas, pensando que estas poderiam inspirar e contribuir com muitas mais ações em favor do circo, como essa versão digital criada pela UFRJ em parceria com a Funarte e que vai valorizar e dar visibilidade às famílias tradicionais circenses do Brasil.

Fale um pouco sobre o projeto.

A EnCIRCOpédia, na versão digital, faz parte desse projeto maior criado e desenvolvido pela UFRJ e Funarte, intitulado Arte de Toda Gente. A EnCIRCOpédia Virtual vai disponibilizar vasto material compilado como vídeos com depoimentos dos artistas e dos diversos outros profissionais que compõem o mundo do circo. Dos eletricistas aos trapezistas, do bilheteiro ao mestre de pista, do cozinheiro às bailarinas, do porteiro ao malabarista. Todos vão contar suas histórias e falar das especificidades das funções que exercem, além dos seus sonhos e da sua visão do mundo.

Qual é a sua abrangência?

A EnCIRCOpédia Virtual é composta de histórias de vida, cenas do cotidiano, ensaios, números artísticos, fotos, matérias de jornais, cartazes, folders e outras contribuições de 87 circos que estão situados em 11 estados brasileiros. Causos, aventuras e desventuras, tragédias e comédias que revelam as particularidades do incomum, inseguro e invisível cotidiano deste bravo e resiliente povo circense.

E como é viver no circo?

Para se compreender o que é viver no circo, é preciso lembrar que o povo circense é nômade, que seu trabalho é a apresentação de seu espetáculo e que, para apresentá-lo, ele leva, de cidade em cidade, a sua própria casa de espetáculo e as acomodações do público. Seu trailer é sua moradia. A essência desse povo consiste em sempre viajar. Ir seguindo sempre em frente, sem ter para onde voltar.

Em seu cotidiano encontramos as montagens, desmontagens e mudanças do circo; os riscos nas estradas, as incertezas de conseguir local para montar suas lonas, os desafios e complexidade dos trâmites burocráticos para obter autorização para apresentar seus espetáculos em cada localidade.

No dia a dia, misturado às expectativas da vinda do público e, com ele, a garantia do seu sustento, inúmeras atividades exigem muita atenção, esforço físico e criatividade dessas pessoas. Como a manutenção dos aparelhos técnicos, os ensaios, a criação dos números artísticos, a confecção de figurinos, a divulgação dos espetáculos e as lidas com o preparo dos alimentos tradicionais do circo, como a pipoca e algodão-doce, vendidos no intervalo dos espetáculos. Tudo permeado pelo constante enfrentamento do preconceito e da discriminação. Assim como são constantes as dificuldades de acesso à assistência social, à educação formal e ao sistema público de saúde. Sem esquecer as dificuldades potencializadas neste período da pandemia.

Mas, apesar desse duro estilo de vida, a vida no circo faz desse um povo forte que tudo supera, pois a principal magia do circo consiste em transformar dor em alegria!

Sula Mavrudis

 

Para quem não é de família circense é possível fazer parte do circo? Por onde começar?

Pode-se ingressar em um circo sendo contratado, como artista ou como técnico. Até para trabalhar nas demais funções que compreendem o mundo do circo. Mas os casamentos representam a principal razão que leva muitas pessoas a optarem pelo circo.

Não é uma prática comum os circos oferecerem oficinas para quem deseja entrar para uma companhia específica. Sendo uma casa de espetáculos itinerante, um negócio familiar que costuma realizar apresentações pelo menos cinco dias por semana, o circo, quando necessita de outros números artísticos além dos executados pelos seus próprios integrantes, contrata artistas já formados, prontos para trabalhar.

Estes artistas podem vir de outros circos, ou seja, de outras famílias tradicionais, ou de escolas e de projetos sociais de circo. Mas, em sua maioria, os artistas contratados são trupes de famílias tradicionais, pois é costume no circo contratar uma família cujos membros vão exercer diversas funções sejam artísticas, técnicas ou administrativas.

Os circenses ministram cursos nas escolas de Circo eou cursos livres? Como é feita essa difusão do conhecimento para fora do âmbito familiar?

Não é muito comum os circenses das lonas itinerantes serem contratados para ministrar oficinas fora do próprio circo. Mesmo quando saem do circo e ficam morando na cidade, encontram dificuldade para serem contratados, pois o sistema de educação formal exige formação acadêmica. O que não é o caso da maioria dos circenses, de formação tradicional. Esta é uma reivindicação antiga, porém ainda falta legislação para reconhecer o mestre circense, a fim de que este possa exercer a função também fora da lona do circo.

Mesmo com essas restrições, as técnicas circenses se propagam casa vez mais para fora da lona: Escolas e projetos sociais de circo se encarregam de tornar esta arte exemplar mais acessível. Os professores, oriundos, em sua maioria, da área de educação física, teatro e dança e uma minoria do circo tradicional. Em comum, a paixão pelas artes circenses, pelo desafio a si mesmo é às leis da natureza.

As escolas de circo demoraram a chegar ao Brasil, mas a partir de 1978, com o exemplo da Academia Piolim de Artes Circenses em São Paulo e, em seguida, a criação da Escola Nacional de Circo, no Rio de Janeiro e do Projeto Arrecirco Recife, as escolas de circo e atividades afins, como cursos livres, oficinas, workshops, começaram a prosperar rapidamente nos quatro cantos do país. O Circo se desdobra em novas experiências artísticas, abre novas portas para a inspiração, propicia novas convivências, explora novas linguagens, corre novos riscos, percorre novas estradas ao mesmo tempo em que fixa raízes nas comunidades, especialmente em comunidades acadêmicas! E assim a atividade física circense ganha seu discurso.

Mas a “magia” do circo continua a mesma! Seja no circo itinerante, formando artistas pela antiga e tradicional pedagogia do circo, batizada como “Pedagogia da Convivência” pelo saudoso professor e filósofo pernambucano, Luis Mauricio Carvalheira, seja nos diversos segmentos circenses com seus também diferentes processos de ensino.

No caso dos casamentos, como você mencionou, eles ocorrem em geral entre familiares, membros de outras famílias circenses ou pessoas de fora que assim acabam se agregando ao circo?

Acredito que por viverem em comunidade, no circo o casamento entre os próprios circenses é mais comum. Em cada circo vivem várias famílias, o que propicia a convivência dos jovens e os casamentos. A passagem do circo pelas cidades é muito rápida, não permitindo que as atrações que possam acontecer entre os circenses e pessoas da plateia tenham tempo de evoluir.

Ainda assim, o mundo do circo também é formado por belas histórias de amor e de casamentos entre pessoas da cidade que se apaixonaram por alguém do circo! Na maioria destes casos, a pessoa da cidade segue com o circo, porque é muito difícil a adaptação de um circense à vida na cidade.

O casamento também é um problema para a comunidade em que os familiares vivem e trabalham juntos, realizam seus números artísticos juntos ou executam outras tarefas no circo que contribuem para a renda familiar. No caso de casamento entre circenses de grupos distintos ocorre um certo desconforto entre as famílias, pois, sendo as duas famílias de circos diferentes, uma das famílias perderá alguém que faz parte dessas atividades profissionais familiares.

Às vezes, mesmo que as duas famílias sejam do mesmo circo, uma das pessoas que se casa passa a participar do número artístico da outra família, ou o novo casal cria seu próprio número. Deste modo, os casamentos podem comprometer a renda das famílias, demandando mudanças para garantir a sobrevivência de todos, lembrando que o circo vive exclusivamente da renda da bilheteria e que as incertezas desta e a insegurança, são grandes.

Muitas vezes, assim como na cidade quem casa quer casa, no circo, quem casa, acaba precisando ter seu próprio circo!

Sula Kyriacos Mavrudis é artista e pesquisadora Circense, consultora para implantação de projetos de desenvolvimento de políticas para o circo, idealizadora e produtora da Cidade do Circo – Centro de Referência e Rede de Apoio ao Circo-RAC. No teatro, é autora, diretora, atriz, bailarina, coreógrafa, mímica, musicista, e contadora de histórias e integra o Grupo Circo Irmão Dourado.

Filha de imigrantes gregos, Sula nasceu no Paraná, mas viveu de forma itinerante como os circenses, pois seu pai trabalhava na construção de hidrelétricas. Ela tem contato com os circenses desde sua infância, pois nas vilas operárias dos canteiros de obras onde o pai trabalhava, ou em cidades próximas, muitos circos se apresentavam, o que a possibilitou ter muito contato com as famílias circenses, assistindo espetáculos todos os dias das temporadas.

Anos mais tarde passou a interceder pelos circenses, buscando a garantia de seus direitos fundamentais por meio da implementação de políticas públicas e lei específicas para este segmento social e artístico. Em Minas Gerais, o esforço resultou em políticas significativas para o mundo do circo, como leis municipais específicas para as atividades em várias cidades mineiras e a inclusão, em nível estadual, do circo na pontuação do ICMS Cultural, algo que mudou o paradigma da relação do circo com as cidades naquele estado. Da mesma forma, atuou na mediação com órgãos importantes para a atividade circense, como a corporação dos bombeiros, companhias elétricas, órgãos de licenciamento, educação, saúde e assistência social.

Assista os vídeos da EnCIRCOpédia aqui no site do Projeto Bossa Criativa e no canal Arte de Toda Gente no Youtube.

Nas imagens de abertura e ao longo do texto, Sula Mavrudis em fotos de Cintia e Gabriel Araújo – divulgação.