Caranguejos, cultura e sobrevivência

Parte do projeto Bossa Criativa, a Mostra Virtual São Cristóvão exibiu apresentações e depoimentos sobre história, patrimônio arquitetônico e as variadas manifestações culturais da cidade sergipana, a quarta mais antiga do Brasil, considerada Patrimônio Mundial Cultural e Natural. Nestas duas entrevistas, reunimos dois participantes da mostra: o realizador audiovisual Neto Astério, e o fundador do projeto As Margens do Rio, Thiago Santos Gois (autor das fotos que ilustram esta postagem). Ambos nos falam sobre como a catagem de caranguejos está ligada à cultura e à subsistência da população local.,

Começamos com a entrevista de Neto Astério:

O que levou você, baiano, a viver em São Cristóvão, no Sergipe?

A paixão por Sergipe veio depois de entender a história que o estado carrega. História essa regada a interesses políticos, que favoreceu a capital Aracaju e colocou São Cristóvão para escanteio, com suas ruas abandonadas, com a população à espera de oportunidades que custam a chegar. Saí da Bahia e vim para cá por perceber no estudo a potencialidade de mudança de vida. Vim morar no bairro Rosa Elze pela facilidade em acessar a universidade e descubro aqui essa atmosfera de cidade interiorana que me aproximou bastante de casa, da minha cidade natal.

Quase todas as suas histórias têm como base São Cristóvão. O que te inspira?

O cinema é um setor caro, e por isso, muitos dos profissionais precisam se render às grandes capitais, lugares onde o fluxo financeiro é mais intenso e propício ao desenvolvimento de carreiras. Quem vive em Sergipe, tem um olho nas produções feitas aqui, mas tem o outro olho voltado para fora, atento às oportunidades que podem vir a surgir na Bahia, em Pernambuco, Rio ou São Paulo. Sair em busca de trabalho em outros lugares, por vezes parece ser a única perspectiva. Contar histórias em São Cristóvão é minha tentativa de fazer com que os olhos prestem atenção ao que acontece aqui. Como se, por suplício, esses filmes exclamassem: há muito a ser visto e feito nesta região!

Recentemente, tivemos o curta-metragem Ímã de Geladeira – filme de São Cristóvão – aceito no Festival Tiradentes 2022: a maior tela de distribuição do cinema independente no país.

Sua mais nova produção fala de catar caranguejos, atividade característica da região. Poderia nos contar mais sobre isso?

Caranguejo na Panela é um roteiro de ficção em desenvolvimento que simula a experiência da população artística no estado de Sergipe. O título é uma metáfora para o sufoco que esse grupo passa diariamente. O sufoco da sobrevivência, que nos faz por vezes nos sentir como se estivéssemos numa panela em cozimento que aumenta a temperatura na intenção de nos fazer ceder à pressão. É um paralelo ao prato mais típico da região: caranguejos. Esse prato me interessa devido a sua técnica: o crustáceo colocado vivo em panela com água fervente agoniza até a morte. Pessoalmente, me coloca em várias reflexões.

O filme gira em torno de Ivone, uma atriz sem perspectivas. A personagem foi inspirada em alguma pessoa específica?

Ivone, protagonista deste roteiro em desenvolvimento, é um retrato da pessoa artista que constantemente tem o seu trabalho questionado, desvalorizado. Para quem é do setor, nos resta a sobrecarga: aceitar inúmeros serviços para conseguir fechar as contas no fim do mês. Esta personagem é também um retrato da situação trabalhista no país: plena insegurança sem o menor sinal de avanço futuro. A fome está presente no Brasil como há tempos não víamos.

Os caranguejos têm espaço especial nos pratos da região, não é?

Caranguejo é um prato típico em todo Sergipe – na orla da Atalaia, em Aracaju, temos um caranguejo em escultura que faz a festa das pessoas turistas. A técnica de catar envolve contato direto com o manguezal, ecossistema predominante em São Cristóvão. Particularmente, tenho preguiça de comer. Pense em um trabalho danado que é quebrar a dura casca que o crustáceo tem, sendo que, no fim das contas, a carne é pouca, nada que mate a fome. Prefiro um peixe servido com muita salada e vegetais.

Mas é do rio que vêm esses alimentos, e, portanto, faço questão de evidenciar, como homenagem, o rio, emonde a fé tem nos levado” (nome de outro filme do realizador, disponível em https://youtu.be/Vp3sRlsdl4s), pois é dali que vem a sustância para toda uma população ribeirinha.

O que mais o encanta em São Cristóvão?

São Cristóvão para os olhos desatentos é uma cidade com prédios históricos, ruas centenárias e bastante calor. Para quem se desafia a enxergar além do que é percebido, esse lugar se mostrará um arcabouço de memórias banhado pelo Rio Vaza Barris. Nas andanças, você percebe o extraordinário por meio do ordinário. Na Ilha Grande, o samba de coco das matriarcas Madá e Adelaide nos espera – a travessia até a ilha é a experiência que nos desloca para um outro tempo, uma convivência afastada da agonia do centro urbano.

A cena boêmia é figura firme e presente. São bares que se espalham pela cidade alta e pela cidade baixa. Uma vez ao ano, toda a população é tomada pela energia mágica do FASC – Festival de Artes de São Cristóvão, que acontece geralmente no mês de novembro. São quatro dias de intensa carnavalização, onde o clima de festa predomina com excelência.

Por fim, pontuo que tais filmes existem como um sinônimo de vida. Em meio a políticas de morte, de desvalorização da vida humana, a vontade de se movimentar, de experienciar emoções é a força que se faz presente nesta cidade e em tantas outras esquecidas pelo poder público.

Agora, uma conversa com Thiago Gois, criador do projeto Margens do Rio-Promar

O sustento de muitas famílias de São Cristóvão é proveniente da prática de catar caranguejos. Como você vê a importância dessa atividade para a região?

A catagem de caranguejo é comum em todo território sergipano e, em especial, na cidade de São Cristóvão (Cidade Mãe), e pode ser considerada um fator cultural que está intrinsecamente ligado ao seu processo sócio histórico. A catagem de caranguejo ultrapassa as barreiras do exercício profissional. Ela é entendida enquanto parte da identidade cultural de um povo e, consequentemente, constrói todos os dias a nossa “sergipanidade”.

Dessa forma, a atividade tem sua importância para além da fonte de renda dos milhares de sujeitos que dependem dessa prática direta ou indiretamente para sobreviver. Sua importância está ligada à cultura, à identidade, ao território, à territorialidade, à expressão, ao gênero, ao exercício do trabalho vivo e concreto, ao direcionamento de um povo de uma comunidade, a sua ancestralidade.

É preciso entender a conjuntura que o Estado de Sergipe estabelece com o Caranguejo, e é devido ao modo com o qual essa conjuntura é estabelecida que a catagem ganha novos parâmetros quando comparada a outros estados.      

Em que consiste o projeto As Margens do Rio?

Apesar de o Estado de Sergipe estabelecer que o caranguejo é parte de nossa cultura, são muitos os reconhecimentos que ainda faltam. É deste desejo (mudança/reconhecimento) que nasce o PROMAR (Projeto as Margens do Rio), que tem o objetivo de, por meio de um diálogo democrático, emancipatório e equitativo (equidade social), buscar dialogar com entes públicos e privados e principalmente com toda sociedade civil. O intuito é dar visibilidade social aos catadores e catadoras de caranguejo.

A visibilidade que temos está ligada ao caranguejo enquanto mercadoria. Mesmo que ele esteja ligado à cultura (mercadoria cultural) expressamente na culinária, o que objetivamos é, dentro da memória social, voltar essa imagem para o trabalhador, o catador e catadora de caranguejo. É construir a imagem social dos catadores, e que, ao vermos as estátuas gigantes dos caranguejos ao passar pela passarela do caranguejo, consigamos visualizar para além de um prato culinário, percebendo os agentes culturais que constroem diariamente todo esse processo.

Como filho de marisqueira, que vivenciou de perto desde cedo a atividade, o que você acha que falta na estrutura ou na divulgação da atividade? O que pretende alcançar ao buscar esse diálogo popular?

Em relação à estrutura política/organizacional, necessitamos da implementação de políticas públicas que visem proporcionar de forma efetiva o fortalecimento e a preservação da cultura da catagem de caranguejo.

Em relação ao PROMAR, a maior dificuldade que temos é a falta de um espaço físico para desenvolver algumas atividades pedagógicas, além da falta de financiamento de projetos que possam contribuir para o fortalecimento e preservação da cultura desta prática.

É necessário mobilizar os catadores de caranguejo e, com uma linguagem simples e transparente, sensibilizar toda camada social que cerca a atividade.

Essa é uma atividade passada entre gerações? Você chegou a praticar também? Qual o segredo para ter sucesso nessa área?

A catagem de caranguejo sempre existiu em nossa comunidade, inicialmente como um meio de subsistência. Dessa forma, com o passar das décadas, a catagem de caranguejo adiciona em sua trajetória histórica novas características, porém sua ancestralidade sempre se manteve presente. Um ofício passado de pai para filho, de mãe para filha.

Eu, Thiago Gois, nunca pratiquei a atividade da catagem de caranguejo nem a mariscagem como meio de sobrevivência. Tive essas atividades negadas pelos meus pais durante toda infância e adolescência. Eles sempre afirmaram a necessidade de eu estudar. Hoje sou estudante do nono período do Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e, até o momento, o único em meio a toda família a ingressar no nível superior de educação.

O PROMAR nasce justamente após meu ingresso na universidade, inspirado pela Professora Joseane Soares do departamento de Serviço Social da UFS, (ela foi orientanda do Dr. José Paulo Neto da Escola de Serviço Social da UFRJ), após a disciplina de Tópicos Especiais em Serviço Social com foco na Questão Ambiental.

Participar da produção do documentário financiado pelo Bossa Criativa foi uma experiência única. Primeiro pela possibilidade de expor quem realmente somos; segundo pela possibilidade de transportar conhecimento e informação para várias pessoas do país, partindo do princípio do lugar de fala.

O documentário A Cultura do Invisível, com roteiro e direção de Thiago Gois, pode ser visto no link abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=i5JzVmcTgHk&t=80s

Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=rIRIZ5ZmCc8

Neto Astério é realizador e pesquisador audiovisual nas áreas de produção, roteirista e montador. Desde 2015 tenho feito curtas-metragens que tencionam discussões sobre corpo, território, identidade e memória. Nascido no semiárido baiano e radicado em Sergipe, em seus trabalhos, dedica-se a propagar som e imagem como potente linguagem capaz de transformar e amplificar percepções de mundo.

Thiago Santos Gois é um jovem coordenador da base Cufa São Cristóvão, estudante do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe. Foi o primeiro jovem de sua família a ingressar em uma universidade pública. Filho de uma marisqueira e de um taxista. O jovem é fundador do projeto As Margens do Rio, que tem como objetivo estudar os catadores de caranguejo do município de São Cristóvão, para assim, poder estabelecer um diálogo popular e emancipatório com essa categoria. O PROMAR é uma organização que trabalha especificamente com os catadores de caranguejo dentro de Sergipe.

Veja os demais vídeos da Mostra São Cristóvão aqui no site e no canal Arte de Toda Gente no Youtube.