O fato de ter nascido com baixa visão não impediu a carioca Analú Faria de ser professora de Educação Física e, anos mais tarde – depois de perder totalmente a visão –, ela se reencontrou nas artes do circo e do teatro. A artista estudou no Teatro O Tablado e cursa a Escola de Teatro Martins Pena; esteve na Escola Nacional de Circo e, recentemente, após diversos trabalhos artísticos, formou-se no Circo Crescer e Viver. Hoje, atua na Cia ILTDA e no coletivo Du’Velhomoço. “A cegueira não é uma prisão, prisão é deixar de viver por conta da cegueira”, afirma.
Analú é a estrela de um pocket show que você pode assistir aqui no projeto Um Novo Olhar e, na entrevista a seguir, nos fala de sua trajetória e das emoções propiciadas pela arte circense.
**Como surgiu seu interesse pelo teatro e pelo circo?**
O teatro começou na minha vida na época da escola. Eu tinha mais ou menos uns 12 anos e baixa visão na época, eu enxergava só 8%. A escola sempre me incentivou e aí minha mãe me matriculou num curso de teatro, O Tablado, aqui no Rio de Janeiro, onde fiquei cinco anos. O circo foi um ímpeto, um impulso. Eu já estava começando a fazer a faculdade de Educação Física e fiquei sabendo das inscrições para a Escola Nacional de Circo, tinha baixa visão na época, e acabei entrando para a escola. Minha família nem desconfiava. Pensei “vou deixar para contar depois que eu entrar, se eu entrar”, e acabei entrando. Fiquei na escola um ano e meio e acabei trancando, pois realmente não estava conseguindo dar conta da Escola. a faculdade e mais estágio. Tive que deixar minha paixão do circo guardadinha.
Em 2010, quando eu perdi totalmente a visão e me aposentei de minha profissão de professora de Educação Física, tive que refletir o que queria da minha vida, já que não podia mais fazer algo de que gostava tanto, que era dar aulas. E aí veio um mosquitinho, pousou e falou “Ana, lembra da sua paixão pelo teatro, pelo circo?” Na época eu morava em Natal, Rio Grande do Norte, e procurei um curso de Formação de Atores. Acabei fazendo o curso e um professor de teatro me indicou para uma companhia de que ele fazia parte. Quando ele falou que tinha circo nessa companhia dele, isso me arrebatou. Voltei em 2016 para o Rio de Janeiro, a convite do Circo Crescer e Viver, para uma formação em circo, como residência. Aí minha carreira artística deslanchou, comecei a fazer novos projetos no teatro e no circo aqui no Rio.
**Como foi a criação da personagem Pinduca?**
A Pinduca, minha palhaça, surgiu inesperadamente. Eu estava fazendo minha residência na Escola Nacional de Circo e aguardava por um amigo que participava de uma escola de palhaços, que funcionava no mesmo local, quando o diretor dessa escola de palhaços perguntou se eu não gostaria de participar daquele momento. Participei e acabei sendo convidada para o restante do curso. Ao final, tive o prazer de ser batizada pelo palhaço Biribinha. Foi um momento delicioso e, através de um exercício, de uma atividade de descoberta, uma palhaça me mostrou que eu tinha algo dentro de mim que tinha que sair.
E aí a Pinduca foi surgindo devagarinho. Primeiro surgiu aquele ser que não enxerga, mas não sabe que não enxerga, numa vibe meio “mister magoo” [personagem de desenho animado com baixa visão]. Ela faz as coisas do jeito dela, sem pensar que não enxerga. E aí tem a ver com as trapalhadas dela. O nome Pinduca surgiu um pouco depois. Pinduca é como minha mãe sempre me chamava quando eu era criança, e eu descobri depois que era o nome de uma artista inclusive. Gosto desse nome, me remete à minha infância, e como palhaço tem isso, tem aquele lado inocente, infantil, eu me apeguei a ele e ficou Pinduca.
**O que você sente quando faz acrobacias e atua no trapézio?**
Fazer circo, acrobacias, estar em cima de um trapézio é algo libertador. Por exemplo, em cima do trapézio, sou eu e o trapézio, mais ninguém. É uma sensação de liberdade muito gostosa, muito boa. Você está lá em cima, sentindo o cheiro, o picadeiro, percebendo a movimentação das pessoas, o som, a música, o vento com a velocidade do movimento que você faz, que provoca no seu corpo. Isso tudo aliado ao desafio de ter que fazer manobras arriscadas em cima de um aparelho aéreo que pode estar a dois, cinco ou seis metros de altura, É isso que me toca, que provoca, que me faz ter combustível para vencer os desafios. O circo mexe muito comigo em relação a me provocar, descobrir onde está o meu limite, que eu ainda não sei onde está.
**Há algum fato curioso ou algo mais que gostaria de relatar?**
Sempre brinco muito, sou muito tranquila com a minha cegueira, lido com isso muito bem e aí a gente acaba sempre brincando um pouco. As pessoas falam “ah, como você não tem medo, você fica nas alturas?” E eu falo: “justamente, eu estou lá em cima e não estou vendo nada, é muito mais fácil”. Brinco muito, as pessoas ficam perguntando como eu tenho coragem de fazer uma acrobacia em cima de uma pessoa que tem o dobro da minha altura, aí eu falo: “gente, andar na cidade do Rio de Janeiro é muito mais desafiador”.
Não tenho vergonha de dizer que sou cega, que sou artista, que sou palhaça, que sou mulher. Isso tem que ser dito e exposto para que as pessoas não tenham medo ou vergonha. Porque, às vezes as pessoas me perguntam: “você quer que eu anuncie que você é cega? Não é muito ofensivo?” E eu digo: “gente, mas eu sou cega, não enxergo nada, pode dizer”. A cegueira não sou eu, a cegueira é algo que está na minha visão. Eu só sou ausente de visão e mais nada, o resto funciona tudo direitinho (risos).
**Que mensagem você deixaria para aqueles que gostariam de trabalhar com circo, seja com trapézio ou acrobacias, mas ainda não tiveram coragem para iniciar?**
O que eu posso dizer para as pessoas que queiram procurar a arte do circo, seja uma pessoa que enxerga ou não, que escuta ou não, que anda ou não, é que se desafie. Mesmo que seja para experimentar algo mais singelo, mais simples que seja. Desde uma cambalhota ou subir numa corda, porque a arte, o circo, além de fazer bem para o corpo, faz bem para a alma. Trabalha com nosso interno, com nossas questões de medo, de desafio, de confiança. A gente precisa muito aprender a confiar no outro quando está fazendo uma acrobacia; E isso tudo, se levamos para a vida da gente, só tem a contribuir, a nos fazer crescer como pessoa, e até profissionalmente. Mesmo que não siga na carreira de artista de circo, seja em qualquer outra carreira.
Eu acredito que o circo tem esse poder de agregar novas valências para sua vida. A primeira coisa para isso é ter vontade e correr atrás, pesquisar, procurar na Internet, perguntar às pessoas que já fazem. A gente tem muitas possibilidades hoje para desenvolver o circo e eu fico muito feliz quando vejo pessoas com deficiência seguindo essa carreira.
Eu espero que, no futuro, existam mais incentivos, que as empresas, os espaços culturais, as pessoas que trabalham com circo – sejam elas artistas, técnicos ou professores – estejam disponíveis para sair da sua zona de conforto e se lançarem a trabalhar com pessoas com deficiência. E que essas pessoas, se quiserem trabalhar profissionalmente, procurem uma formação para que se possa produzir um trabalho bacana. Eu busco sempre o melhor de mim e acho que isso me ajuda muito, como pessoa e como profissional.