A poesia dos “estrangeiros linguísticos”

Para Bruno Abrahão (nas fotos), doutor pela UFRJ, onde também é professor, os surdos poderiam ser classificados como “estrangeiros linguísticos”. Isso poque a comunidade surda não se reconhece como deficiente, já que cada integrante ao nascer já é capaz de se comunicar por sinais. Coordenador responsável por uma apresentação artística de Slam Surdo, a poesia em Libras, durante o III Encontro Um Novo Olhar de Arte/Educação + Acessibilidade – que acontece ente 23 e 25 de agosto, no Rio de Janeiro – ele nos fala sobre sua trajetória, a arte e a poesia surdas. A entrevista que você vai ler a seguir foi toda feita em Libras – com a intermediação de intérpretes.

Como surgiu seu interesse pela poesia? Quando decidiu dedicar seus estudos à poesia com Libras?

Inicialmente, meus estudos foram focados na leitura e contação de histórias para surdos. As histórias eram adaptadas para a cultura e identidade surda e, com o tempo, os sujeitos surdos começaram a ter suas produções artísticas. Na época, eu estava no Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES, e, certa vez, um surdo veio até a minha faculdade para apresentação de poesia, com um vídeo em que recitava sua poesia em Libras. Eu vi aquilo e fiquei muito interessado. Esse tipo de poesia era conhecido como “visual vernacular”, que até então eu desconhecia.

Aqui no Brasil, como em outros países, há surdos que sinalizam suas poesias como visuais vernaculares. Entretanto, o conceito do termo inexistia. Então, comecei a me interessar e a pesquisar na internet, mas não encontrei nada a respeito. Decidi, então, estudar o assunto, sugerindo-o como tema para um mestrado em Ciências da Literatura na UFRJ.

Na conversa com o orientador, eu disse que queria estudar focado na poesia surda, porque percebi que a sociedade desconhece que o surdo tem expressões artísticas em sua própria língua, que é visual, o que gera dúvidas como “quais as características dessas poesias?”.

Assim, encontrei aqui no Brasil surdos que se expressam por poesias em grupos como “slam surdo” ou “slam corpo sinalizante”. Ambos têm crescido bastante, principalmente no estado de São Paulo. Observei que há também nesse movimento a poesia visual vernacular e comecei a pesquisar esses movimentos concomitantemente, ambos com grande importância na luta da cultura surda.

Como você vê a importância da divulgação da Poesia Surda e do Slam Surdo, tanto para os artistas quanto para o público em geral? O slam pode aproximar mais a cultura surda da população em geral?

Acredito que a divulgação da poesia surda e do slam seja de suma importância, porque gera visibilidade sobre os sujeitos surdos, nossas histórias de vida, nossas lutas, as opressões, nossos sofrimentos e dificuldades. Isso serve para mostrar que a arte transforma e traz visibilidade, que a sociedade pode reconhecer e saber o que o sujeito surdo necessita.

Pensando agora sobre essa aproximação do público em geral, nas apresentações do slam, os poetas têm intérprete de voz, ou seja, eles sinalizam em língua de sinais e o intérprete faz em língua portuguesa. É uma apresentação bilíngue. Alguns Slams, porém, se apresentam para públicos bilíngues e apenas sinalizam.

Na poesia visual vernacular não há o recurso do intérprete de voz, pois ela é uma arte própria da comunidade surda. Nesse caso, cabe ao público acompanhar o espetáculo visualmente, pois a poesia se concretiza com recursos estilísticos da língua de sinais.

Como você classifica a importância da arte no desenvolvimento das pessoas com algum tipo de deficiência e especialmente em relação aos que possuem deficiência auditiva, tanto no papel de receptor como de produtor de arte?

A comunidade surda não se reconhece como deficiente. Isso porque, ao nascer o surdo já é capaz de se comunicar por sinais junto com as lutas pelos diferentes acessos. É necessário reconhecer que eu não tenho necessidades especiais, na verdade, preciso de apenas uma coisa: língua de sinais e comunicação visual. E a sociedade precisa dar esse acesso e disponibilizar a acessibilidade. Não precisamos de uma ajuda material.

Mas precisamos do acesso por meio da língua de sinais, com intérpretes, com uma comunicação fluida. Assim, como ocorre quando há uma pessoa estrangeira que fala inglês, por exemplo, e que não é reconhecida como deficiente, nós surdos também somos estrangeiros linguísticos.

Dentro do movimento, as pessoas que são deficientes auditivas e que não sabem língua de sinais, podem sim fazer parte, assistir e até serem convidadas para ter essa experiência visual e perceber essas sinalizações. Isso porque deficiente auditivo é aquele que perdeu gradativamente sua audição e tem uma boa percepção visual, contudo pode acontecer desse sujeito fazer uma tradução para a língua escrita.

Entretanto, tanto a língua escrita, quanto a falada em uma poesia não geram afinidade emocional, já que a língua de sinais é essencialmente visual e é desse recurso que nasce a emoção, e essa tradução para escrita ou para a fala remove a essência e parece que há algo estranho na apresentação. Isso é importante de ser divulgado. Imagine uma poesia escrita em inglês e que foi traduzida para língua portuguesa, você percebe que a emoção desaparece ou esmorece, porque são estruturas linguísticas diferentes.

Durante a pandemia, com o aumento de lives e eventos online, vimos um aumento grande do número de intérpretes de libras e eventos virtuais acessíveis. Você já considera isso um avanço? O que falta nesse momento?

Percebemos que houve um aumento no número de poesias postadas nas redes sociais, como o Instagram, e o Youtube, no período pandêmico.

Eu entrei no mestrado em 2018 e minha pesquisa possuía pouquíssimos vídeos. Porém, durante o processo, mesmo antes da pandemia, eu já notava um aumento significativo nas produções em língua de sinais. Agora, com a continuidade dos meus estudos no doutorado, há uma abundância de vídeos. Eu não preciso ficar mais caçando minuciosamente como antes, já que atualmente fica até difícil de escolher apenas alguns. As produções cresceram muito!!

Nesse sentido, a pandemia incentivou demais a ampliação do uso de tecnologias, o que facilitou esses compartilhamentos de vídeos dos mais variados tipos. E há também a contribuição dos eventos, lives, apresentações de poesias, e isso fez diferença.

Nesse momento, a comunidade surda, quando recita poesias, não está dependente da língua portuguesa. Essas expressões são independentes e são feitas somente em língua de sinais, descolonizada da língua portuguesa.

Fale um pouco como serão as apresentações do Slam Surdo durante o III Encontro Um Novo Olhar.

No dia da apresentação, teremos seis artistas, três mulheres e três homens, para trazer o conceito de diversidade. Teremos uma pessoa de pele negra, uma feminista, pessoas homoafetivas, ou seja, diversidade. Além disso, teremos os surdos que apresentarão suas poesias, que serão sinalizadas em Libras com a versão direta em voz.

Contaremos também com audiodescrição, mas vale ressaltar que a emoção é própria da Libras e que mesmo que seja lido, falado ou escutado, não será comparado com a poesia sendo sinalizada em língua de sinais.

Você é capaz de imaginar e até visualizar toda a cena perante seus olhos, de maneira visual. Seria como se você entrasse em um novo mundo e conseguisse perceber visualmente tudo!

Bruno Ferreira Abrahão

Mestre em Ciência Literatura (Literatura Comparada) e doutorando no programa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como professor assistente na Faculdade de Letras, no Setor de Estudos Literários do Departamento de Letras-Libras, onde é responsável pelas disciplinas de Literatura Surda e Escrita de Sinais e na Pós-Graduação em Libras: Ensino, Tradução e Interpretação. Desenvolve pesquisa sobre Libras e letramento visual para surdos, por meio de contos, fábulas e poesia surda e contemporânea, especialmente sobre Visual Vernacular, Poesia Concreta, Poesia A-Z, SLAM de Poesia e Poema Processo.

O Slam Surdo

Seis artistaspoetas, sendo 3 homens e 3 mulheres, realizarão apresentações artísticas em Libras. São eles: Alef Felipe de Souza. Daniela Cruz, Karine Souza, Paulo Andrade, Shirlei Barros e Weslei Rocha,

Acompanhe a programação do III Encontro Um Novo Olhar de Arte/Educação + Acessibilidade aqui pelo site do projeto Um Novo Olhar e pelas redes sociais do Arte de Toda Gente.

Fotos de acervo pessoal – divulgação